sábado, 24 de setembro de 2016

O maior poliglota do mundo, retirado do blogue POLYGLOT NERD

O recorde é de um brasileiro chamado Carlos Amaral Freire. Aqui no blog vou colocar uma entrevista feita com ele em 2003, pelo site Jornaleco. E uma reportagem mais recente falando sobre o recorde dele, feito pelo Portal Biguá. Ainda, há uma entrevista disponível no YouTube para quem tiver mais curiosidade.

Reportagem

Poliglota bate o recorde mundial de idiomas

Carlos Amaral Freire, 74, bate o recorde mundial de quem mais estudou idiomas.

O Professor aposentado Carlos Amaral Freire, 74, acabou de bater o recorde mundial de aprendizado de línguas- 115. O recorde anterior era do cardeal italiano Giuseppe Mezzofanti (1774-1849), do século 19, a quem era atribuído o feito de poder traduzir 114 línguas.

Gaúcho de Don Pedrito, fronteira com o Uruguai, Carlos Freire mora num sítio no Morro das Pedras, Florianópolis. Publicou ano passado um livro intitulado “Babel de Idiomas”, onde traduziu para o português poemas em 60 línguas diferentes.

Se não for provado o contrário, Carlos bateu outro recorde: o do ser humano que conseguiu publicar traduzindo para sua língua materna (no caso dele, o português) poemas escritos no maior número de idiomas. O Guinness (livro de recordes) será consultado em breve para dar um parecer.

O Biguaçu em Foco descobriu o professor Carlos Freire, um intelectual arredio a badalações e à autopromoção, por intermédio do professor de árabe e russo, Manhal Kasouha Cherem, de Florianópolis.

O JBFoco publicou reportagem sobre a história do professor Freire em outubro de 2004, matéria esta que acabou sendo premiada neste ano num concurso da Adjori/SC (Associação de Jornais do Interior de Santa Catarina).

Detalhe

Freire não fala 115 línguas. Isso é humanamente impossível. Haja memória! Ele fala umas 30 com ou mais ou menos razoável fluência.

Tem idioma que ele estudou há 30 anos e nunca mais revisou por falta de tempo porque está sempre estudando uma nova língua. E se ele deparar com o idioma estudando há muito tempo, certamente não o lembrará na hora. Ele precisa de algumas horas ou dias para relembrar a língua.

Hoje ele está “enferrujado” na língua macedônia. Mas na década de 1990, Freire surpreendeu um jornalista macedônio (da Macedônia, região da Iugoslávia) dando uma entrevista naquela exótica língua um mês depois que começou a estudar o idioma.

Desde a juventude, ele se dedicou única e exclusivamente ao estudo de idiomas. Continua até hoje com a rotina de passar de três a quatro horas por dia estudando. Na realidade, a capacidade de Freire é traduzir, COM ou SEM DICIONÁRIO, textos nas 115 línguas que estudou. Carlos foi reconhecido pela Universidade de Cambridge, Inglaterra, que lhe conferiu o certificado dos 2001 homens mais surpreendentes do século XX.

Um homem desse merecia até ser um “Globo Repórter” especial.

Lista das 115 línguas estudadas pelo professor Freire

Africânder
Aimará
Albanês
Alemão
Suíço
Árabe
Aramaico
Armênio
Assírio
Azeri
Basco
Bengali
Bielo-russo
Birmanês
Bislama
Bretão
Búlgaro
Caingangue
Cantonês
Casaque
Catalão
Chinês
Coreano
Corso
Crioulo francês do Haiti
Crioulo Giné Bissau
Curdo
Dinamarquês
Egípcio
Eslavônico
Eslovaco
Esloveno
Espanhol
Esperanto
Estoniano
Feróico
Filipino
Finlandês
Francês
Franco-provençal
Frísio
Friulano
Gaélico escocês
Galego
Galês
Georgiano
Grego clássico
Grego moderno
Guarani
Hauça (ou Hausa)
Hebraico
Híndi
Hitita
Holandês
Húngaro
Iídiche
Indonésio
Inglês
Ioruba
Irlandês
Islandês
Italiano
Japonês
Javanês
Khmer
Ladino (Dalmácia)
Ladino (Judeu-Espanhol)
Latim
Letão
Lituano
Luxemburguês
Macedônio
Maia
Malaio
Malgaxe
Maltês
Mapuche
Mongol
Náutle
Neomelanésio
Nepali
Papiamento
Pashto
Persa
Polonês
Provençal
Quíchua
Romanche
Romani (Cigano)
Romeno
Russo
Samoano
Sânscrito
Sardo
Servo-croata
Somali
Sorábio (alto)
Sorábio (baixo)
Suaíli (Swahili)
Sueco
Tailandês
Tâmil
Tártaro
Tcheco
Tibetano
Tupi
Turco
Ucraniano
Uólof (Wolof)
Urdu
Uzbeque
Vietnamita
Volapük
Xavante
Zulu

Entrevista
 
Feita por Janer Cristaldo
 
Considerado pela Universidade de Cambridge como um dos dois mil eruditos do século XXI, ele já estudou sistematicamente mais de cem línguas, das quais domina sessenta. Há mais de quarenta anos vem desenvolvendo o projeto de estudar sistemática e cientificamente duas novas línguas por ano. Traduziu para o português poesias de 60 idiomas, desde o sanscrito até o chinês, reunidos na antologia multilíngüe Babel de Poemas, cuja edição está sendo negociada com a editora gaúcha L&PM. Uma monografia sua, Los fonemas oclusivos y africados del aymara y del georgiano, foi publicada em espanhol pela Universidade de Sucre e traduzida ao russo e ao serbo-croata. Nasceu em Dom Pedrito, RS, há setenta anos e estudou nos Estados Unidos, Espanha, Itália, China, na ex-Iugoslávia, na ex-Tchecolosváquia e na ex-URSS. Tem 70 anos, chama-se Carlos do Amaral Freire e vive atualmente em Florianópolis.

Janer- Onde e como surge teu interesse por línguas?

Carlos - O meu interesse pelo estudo das línguas estrangeiras surgiu cedo, quando era ainda estudante ginasiano, ao dar-me conta de que ler os clássicos estrangeiros em traduções representava uma enorme desvantagem, isto é, que somente lendo no original eu poderia usufruir do prazer estético que só o original oferece plenamente. Depois, o fascínio pelo estudo, pela descoberta, através das línguas, de outros tantos mundos, culturas e maneiras diferentes de pensar tomaram conta de mim, principalmente com as muitas viagens que realizei mais tarde. O conhecimento de muitas línguas estrangeiras deu-me a oportunidade de fazer amizades com muitas pessoas em vários lugares do mundo. O domínio de línguas estrangeiras nos fornece, talvez, a ferramenta mais eficiente para o conhecimento e a aceitação do diferente.

Janer-Te dedicaste nos últimos anos a um empreendimento insólito em língua portuguesa e mesmo nas demais línguas, a tradução de 60 poemas de sessenta idiomas diferentes. Tens dificuldades para a publicação desse trabalho?

Carlos -Há mais de 20 anos venho fazendo traduções, tanto prosa como poesia, de muitíssimas línguas estrangeiras ao português. Primeiramente, comecei a fazer traduções de contos, principalmente, e de poemas como hobby. Ou melhor, como um desafio lingüístico para testar minha própria habilidade e conhecimento das línguas que vinha estudando sistematicamente há mais de 40 anos. Me explico... quando estudo uma determinada língua, me proponho como objetivo final chegar ao ponto de poder traduzir algo dessa língua ao português. E, se possível, conseguir comunicar-me nela oralmente. Comecei com as traduções de pequenos poemas das línguas latinas, germânicas e eslavas. Depois... as demais. Mais tarde, aconselhado por amigos, resolvi reunir todas as traduções a fim de fazer uma antologia multilingüe, na qual constasse o original vis-à-vis com a respectiva tradução ao português. E, como apêndice, pequenas notas biográficas e lingüísticas onde dou algumas informações sobre algumas línguas exóticas ou pouco conhecidas do leitor brasileiro, como georgiano, maltês, romani, papiamento, romanche, indonésio, sauíli, albanês. Etc. Sim, tenho dificuldade de encontrar um editor. Algumas editoras (universitárias, principalmente) disseram-me que havia problemas técnicos – doze alfabetos diferentes, necessidade de criar vários sinais diacríticos e símbolos diferentes – creio porém que a razão principal foi a constatação de que semelhante edição poderia ser onerosa e com pouco retorno financeiro.

Janer -Onde aprendeste línguas não-latinas, como chinês, russo e árabe?

Carlos - As línguas latinas e as germânicas estudei-as em Porto Alegre, na PUC. As eslavas estudei nos Estados Unidos, Itália, Iugoslávia, Tchecolosváquia e na ex-URSS. O russo eu já tinha iniciado aqui no Brasil, com emigrantes, durante a época que estava na universidade. Com o russo criei um método que considero muitíssimo eficiente. Fui morar com uma família russa para ter a possibilidade de aprendê-lo na prática, na necessidade de cada dia. A parte teórica eu estudava sozinho.
O chinês, que tinha começado aqui no Brasil, com nativos dessa língua (o mandarim) tive, mais tarde, a oportunidade de seguir um curso regular na Universidade de Madri e, depois, na Universidade do Texas. Bem mais tarde, por volta de 1985, fiz um curso intensivo na Universidade de Pequim. Estudei o árabe, principalmente, com os muitos amigos palestinos que tinha aqui no Brasil. Depois tive a oportunidade de seguir um curso teórico-prático dessa língua, também na Universidade de Madri.
Em resumo, poderia dizer que estudei umas 30 línguas em cursos regulares, oficiais ou universitários. As demais, estudei-as autodidaticamente. Alguém já disse que as dez primeiras são as mais difíceis. Depois, de acordo com o objetivo em vista ou a necessidade momentânea, a gente inventa o seu próprio método.

Janer-Julgas ser o chinês uma língua simples?

Carlos -Sim, o chinês é muito simples, no sentido lingüístico do termo. Isto é, uma língua simples em contraste com as indo-européias, por exemplo, que são línguas complexas. Creio que esta é, justamente, a razão principal porque a sua aprendizagem se torna tão difícil para nós, ocidentais. Estamos acostumados às estruturas lingüísticas complexas, como a do português. O chinês é extremamente conciso, não tem gêneros nem números gramaticais e o verbo não se conjuga. Simples não é sinônimo de fácil e, no caso do chinês, é antônimo. As estruturas simples tornam-se difíceis, confusas, pois não sabemos como compará-las com as nossas.

Janer -Na Bolívia, encontraste um futuro "não-aristotélico" no aimara. Conta melhor essa descoberta.

Carlos -Durante minha longa estada (dez anos) na Bolívia, onde dirigi o Centro de Estudos Brasileiros em La Paz, nomeado pelo Itamaraty, tratei logo de estudar as línguas altiplânicas, com falantes nativos. Essa experiência me foi muito valiosa, pois pouco mais tarde fui convidado a lecionar Lingüística Contrastiva na Universidade Mayor de San Andrés, em La Paz. Foi comparando as estruturas lingüísticas dessas línguas com várias outras, indo-européias ou não, que cheguei a algumas conclusões interessantes sobre as notáveis semelhanças fonéticas delas com as línguas caucásicas e das características estruturais com as línguas altaicas.
Quanto ao aimara, como demonstrou cabalmente o matemático e aimarista boliviano Guzmán de Rojas, “existe uma lógica lingüística diferente, não-aristotélica, claramente incorporada na sintaxe dessa língua”.
A comunicação deficiente, ou melhor, o desentendimento multissecular entre os indígenas e os conquistadores e seus descendentes explica-se, em grande parte, devido a sua diferente cosmovisão que, no caso dos aimaras, reflete-se nitidamente em sua sintaxe através de morfemas especiais bem definidos. Nós que falamos línguas indo-européias estamos imbuídos da concepção aristotélica, dicotômica, de verdadeiro X falso, certo X errado, sim X não, e temos certa dificuldade em aceitar ou compreender a concepção trivalente: certo-errado-verossímil, do aimara, onde a ambigüidade ou o terceiro não incluído tem valor de verdade. A fim de tornar mais claro o tipo de lógica trivalente do aimara usarei dois exemplos da notável monografia de Guzmán de Rojas, Problemática Lógico-lingüística de la Comunicación Social en el Pueblo Aimara. Quando um falante nativo aimara, expressando-se em espanhol, diz: “- Mañana he de venir nomás”, as palavras usadas não coincidem com o significado que as mesmas têm em espanhol, ou teriam em português. A expressão “nomás”, muito típica do espanhol popular da Bolívia e do Peru, em situações semelhantes, revela, na verdade, o pensamento aimara maltraduzido ao espanhol. Em sua língua materna usaria a frase: “- Qharürux jutätki”, onde o morfema “ki” traduz ou expressa a dúvida simétrica, o terceiro valor da verdade, o que simplesmente não existe em nossas línguas. Usa, pois, a expressão 'nomás” para traduzir o sufixo “ki”, indicativo apenas de verosimilhança.
Na realidade, ele quer dizer o seguinte: “amanhã pode ser que eu venha ou pode ser que eu não venha. Não estou me compromentendo”. Quando diz, porém “- Mañana he de venir pues”, usa o “pues” para traduzir o sufixo “pi” do aimara, que indica certeza. Assim, “- Qharüru jutätpi” é a forma aimara que corresponderia ao nosso “- Amanhã eu virei certamente, me comprometi”. Vemos, portanto, que o aimara tem um futuro positivo, um futuro negativo e um futuro de dúvida simétrica. Assim que, se os nossos políticos falassem em aiamara, teriam de escolher bem o tipo de futuro a que se referem.

Janer -Andei pesquisando sobre o Guzmán de Rojas. Não sei se sabes, mas ele criou o Qopuchawi, um ICQ que traduz instantaneamente mensagens a seis idiomas.

Carlos -Durante minha longa estada em La Paz, tive o privilégio de fazer amizade com Guzmán de Rojas e de acompanhar, de perto, o seu projeto. E sabes qual é a língua que usa como base para a tradução das restantes cinco? É o aimara, uma língua aglutinante de extraordinária regularidade sufixal.

Janer -Tens um estudo sobre as afinidades fonológicas entre o aimara e as línguas caucásicas, publicado pela Universidade de Sucre e traduzido ao russo.

Carlos -A minha monografia se chama Los fonemas oclusivos y africados del aymara y del georgiano, publicado pela Universidade de Sucre. Pouco depois foi traduzido ao russo, pois a comparação com o georgiano sempre interessou os lingüistas soviéticos. Mais tarde, entre 1968-88, período em que exerci a função de Leitor de Língua Portuguesa na Universidade de Belgrado, esse trabalho foi traduzido ao servo-croata, pois despertara muito interesse não apenas aos lingüistas mas também a alguns antropólogos e outros profissionais que assistiram às minhas conferências. Estou convencido de que tanto o quíchua como o aimara são línguas tipologicamente altaicas. Contudo, fonologicamente se assemelham às línguas caucásicas e, particularmente, ao georgiano, a língua materna de Stalin.

Janer -Podes nos contar como chegaste lá?

Carlos -Como cheguei lá? Por acaso... Eu estava dando uma aula de fonologia aos meus alunos de Línguas Latinas da Universidade de La Paz. Apresentei-lhes uma fita gravada numa língua desconhecida para eles (e para mim mesmo, naquela ocasião). Depois de terem ouvido o texto várias vezes no laboratório lingüístico eu lhes pedi que transcrevessem com o alfabeto fonético internacional (IPA) as palavras que tinham escutado repetidas vezes. Terminado o trabalho, verifiquei que aqueles alunos, cujas línguas maternas eram o quíchua e o aimara, acertaram mais de 80% o exercício, enquanto que os falantes nativos de outras línguas tiveram um acerto de, no máximo, 20%. A conclusão? Quem ouve pela primeira vez uma língua desconhecida e consegue identificar mais de 80% de seus fonemas é porque, quase seguramente, esses mesmos fonemas existem nas suas línguas maternas.

Depois disso prossegui com minhas investigações, entrei em contato com colegas da Universidade de Tbilissi, capital da Geórgia e, para minha surpresa, fui convidado a fazer pesquisas de campo in loco pela Academia de Ciências da então República Socialista da Geórgia. O meu trabalho, Los fonemas oclusivos y africados del quecha y del aymara é o resultado prático dessas pesquisas. E, de fato, o georgiano, aquela língua desconhecida das aulas de fonologia, tem notável semelhança fonológica com o aimara.

Janer -Quantas línguas dominas atualmente e quais são teus critérios para dar uma língua por dominada?

Carlos -Dominar completamente uma língua, até mesmo a própria língua materna, é uma empresa extremamente difícil. Pra mim, contudo, dominar uma língua é possuir um conhecimento teórico-prático que me permita comunicar-me nela e de poder traduzir, ainda que com dificuldade, um texto literário. Baseado neste critério, um tanto pessoal, eu poderia dizer que domino umas 30 línguas. Outras tantas posso traduzir, mas tenho pouco conhecimento prático. Quando me perguntam quantas línguas falo (ou domino) prefiro responder que conheço, isto é, que já estudei, com critérios filológicos-lingüísticos, mais de 100 línguas durante um período de mais de 50 anos consecutivos. Depois de me ter formado em Línguas Neolatinas e em Línguas Anglo-germânicas (PUC, 1958), mantenho a tradição de começar a estudar, sistematicamente, ao menos uma nova língua estrangeira no início de cada ano. Já escolhi a próxima, wolof (uólofe), que comecei a estudar no dia 1° de janeiro de 2003.

Janer -Traduzir é impossível. Mas é necessário. Como é que fica um texto traduzido do chinês para o português?

Carlos -Não creio que a tradução seja impossível e, a prova disso é que há traduções realmente notáveis, excelentes, principalmente quando a língua-fonte e a língua-alvo pertencem ao mesmo grupo lingüístico e as culturas que elas veiculam são próximas. Na introdução que faço à minha antologia Babel de Poemas, tento mostrar que a poesia clássica chinesa é quase intraduzível. Pode-se traduzir parte dela, não o todo. Por que? Porque a poesia chinesa é escrita em ideogramas, verdadeira arte plástica. É língua tonal, portanto música. É lirismo, literatura por seu conteúdo poética. O poema chinês é uma combinação dessas três artes: pintura, música e literatura.
A caligrafia chinesa é uma arte que não consiste apenas em caracteres ou palavras para transmitir uma mensagem, mas deve compreender, além disso, um elemento visual que expresse um significado por meio da forma. Os ideogramas têm, portanto, alto valor simbólico, intraduzíveis a outras línguas. A descoberta do imenso valor estético dos ideogramas pelos poetas ocidentais, principalmente Ezra Pound e, depois pelos nossos poetas concretistas, foi uma fonte fecunda de inspiração.
Concluindo, poderíamos dizer que o verdadeiramente intraduzível da poesia chinesa não se escreve, mas se pinta com pincel, arte plástica, ou se ouve, quando se lê em voz alta, combinação de tons, música. O que resta, ao traduzir, é algo abstrato e genérico. É como tirar dessa poesia algo consubstancial ao seu corpo. É justamente essa harmonia intrínseca entre conteúdo, forma e um estilo extremamente conciso o que torna a poesia clássica chinesa quase intraduzível.

Janer -Segundo o lingüista francês Claude Hagège, uma língua desaparece todos os quinze dias. Ou seja, 25 línguas morrem por ano. Mais da metade das 600 línguas indonésias seriam moribundas. O ritmo de extinção de línguas, que já se havia acelerado no século passado, deve atingir grandes proporções neste. Isto empobrece a humanidade? Ou torna mais fácil a comunicação entre os homens?

Carlos -O caso das línguas malaio-polinésicas é muito ilustrativo. Elas são faladas desde Madagascar até a Polinésia. Só na República da Indonésia falam-se mais de duzentas línguas diferentes. Como todas essas línguas pertencem à mesma família lingüística foi relativamente fácil elevar o indonésio á categoria de língua oficial do país, pois ela é uma língua veicular, resultado da simplificação e assimilação de muitas outras línguas locais. Somente aquelas línguas antigas indonésias, que têm história e literatura importantes, como o javanês (60 milhões de falantes), o sudanês, o batak, o madurês, o balinês e poucas outras poderão subsistir por muito tempo. O ritmo de extinção das línguas deverá continuar enquanto os países interessados não tiverem políticas lingüísticas definidas, as condições econômicas necessárias e, acima de tudo, contar com lingüistas competentes que possam estudar e classificar as línguas minoritárias em via de extinção. Para que não desapareçam completamente é absolutamente fundamental que elas não continuem como línguas não-escritas e que haja escolas onde possam ser ensinadas. Teoricamente, é claro que a comunicação entre os homens seria facilitada se houvesse apenas umas poucas línguas, porém é igualmente certo que isso acarretaria um enorme empobrecimento do espírito. As línguas são aspectos fundamentais, únicos e irrepetíveis da experiência humana. E, aliás, a característica maior de nossa espécie. Cada língua que desaparece – principalmente sem deixar vestígios, sem ter sido estudada e documentada – significa a extinção de uma espécie.

Janer -Há um estudo alarmante da Unesco, segundo o qual nada menos 5.500 línguas, entre seis mil, desaparecerão dentro um século. Acreditas nesta possibilidade?

Carlos -Se não tomarem, ao menos, as providências acima enumeradas, o desaparecimento de centenas de línguas será inexorável a curto prazo.

Janer -A expansão do anglo-americano e de outras grandes línguas pode ser responsabilizada por este massacre de línguas?

Carlos -A expansão do anglo-americano, assim como a de todas as grandes línguas internacionais, é a conseqüência lógica das conquistas militares e econômicas, tanto no passado como no presente. A língua do conquistador, geralmente, prevalece.

Janer -Teu atual projeto é estudar o wolof. Consta que esta língua é tão perigosa para as línguas minoritárias do Senegal como o inglês ou o francês, pois não é considerada língua estrangeira e possui o prestígio das grandes línguas africanas. Tens opinião sobre a polêmica?

Carlos -No Senegal existem dez línguas nativas, das quais seis foram promovidas a línguas nacionais. O wolof é compreendido por 80% da população. As seis línguas nacionais – peul, serere, diola, malinke e soninke, além do wolof – são ensinadas nas escolas primárias e difundidas através do rádio e da televisão. O Senegal tem, portanto, uma política lingüística definida e não creio que as outras restantes corram o risco de extinção, não como em outros países. A tendência no Senegal é a de continuar o francês como língua oficial e o wolof como língua veicular mais importante entre as demais etnias.

Janer -Por toda a parte, há esforço de lingüistas tentando salvar línguas faladas por comunidades de até 50 ou 100 pessoas. Vale a pena o esforço?

Carlos - Foi justamente o conhecimento de uma das mais antigas línguas pré-colombianas, o aimara, falado por uns dois milhões de pessoas na Bolívia e no Peru, que levou Guzmán de Rojas a constatar que essa língua nativa tem uma lógica do Terceiro Incluído imbuída em sua sintaxe, isto é, uma lógica trivalente e não a lógica dicotômica (verdadeiro x falso), aristotélica, de todas as línguas indo-européias, de toda a cultura ocidental. Há séculos os falantes dessa língua raciocinam segundo esse princípio, hoje reconhecido e defendido por um grande número de cientistas e filósofos: Lobachewsky, Vasilev e J. Lukasiewicz, na matemática. Planck na física, J. Lacan na psicanálise e muitos outros. Esse é apenas um exemplo eloqüente para comprovar o quanto a lingüística aplicada ao estudo de línguas minoritárias e exóticas poderá contribuir para a ciência, para o conhecimento do homem.
Estou plenamente convencido de que o aprofundamento dos estudos de línguas que expressam culturas não-aristotélicas poderá trazer ainda muitas contribuições nesse campo de investigação do Terceiro Incluído. Creio que a investigação sobre a Weltanschaaung, sobre a cosmovisão de falantes de línguas indígenas, assim como a de falantes do chinês, do japonês e do coreano – e de outras línguas não tributárias do princípio da contradição e da lógica clássica – poderá confirmar, definitivamente, a tese do Terceiro Incluído num futuro próximo. É pertinente lembrar que o próprio Einstein admitiu que o princípio do Terceiro Excluído, da ciência clássica, é apenas um postulado metafísico.
Não há dúvida! Vale a pena o esforço. Essa é uma tarefa absolutamente prioritária da lingüística.

Janer -No País Basco e na Catalunha, as escolas estão dando mais ênfase ao basco e ao catalão que propriamente ao espanhol. Na Espanha, há pais que já não conseguem se comunicar com os filhos. A teu ver, há algum lucro em renunciar a um idioma falado por centenas de milhões de pessoas e encerrar-se em uma língua minoritária, falada apenas por centenas de milhares?

Carlos -O caso do basco (euskera) e do catalão é de outra natureza. O basco continua sendo um enigma para a lingüística. Não tem parentesco cientificamente comprovado com nenhum grupo lingüístico. É uma língua única, amada, estudada e difundida por seus falantes. Ao contrário das centenas de línguas africanas, asiáticas e ameríndias, está longe de desaparecer. Ao contrário, o interesse por ela tem crescido enormemente e está sendo ensinada e difundida pela mídia, em todos os níveis.
O catalão é uma língua de riquíssima história e magnífica literatura. Está fadado a um crescimento constante. Se a política lingüística do governo espanhol continuar democrática como está sendo atualmente, reconhecendo autonomia às províncias com língua e cultura próprias, a sorte delas estará garantida. Somente se houver ruptura do Estado e essas províncias se tornarem independentes, aí sim os seus falantes preferirão a língua materna em detrimento do espanhol.

Janer -Está sendo proposta uma nova língua na Europa, o europanto. To speakare europanto, tu basta mixare alles wat tu know in extranges linguas. Seria a única língua do mundo que se aprende quase sem estudá-la. Teria 42% de inglês, 38% de francês, uns 15% de um misto de outras línguas européias e uns 5% de fantasia. No est englado, non est espano, no est franzo, no est keine known lingua aber du understande. Wat tu know nicht, keine worry, tu invente. Terá futuro?

Carlos -Não creio que o europanto tenha futuro. Aliás, a questão de aceitação de uma língua artificial internacional é mais política do que lingüística. Do ponto de vista puramente lingüístico, o esperanto é uma obra-prima e, no entanto, ainda não conseguiu impor-se como deveria.

Janer -Quantas línguas já esqueceste?

Carlos -É uma boa pergunta... Já esqueci muitas, ou melhor, muitas das línguas que estudei estão bastante desativadas. Contudo, com um pouco de esforço elas poderão ser reativadas novamente. Traduzir, por exemplo, é uma das melhores maneiras de não esquecê-las. Por outro lado a idade – estou com 70 anos – é um fator negativo inexorável.

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