segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Experimenta:
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"Nenhum livro é tão ruim que não possa ser útil sob algum aspecto." Plínio, O Velho

"Se quer ser amado, ame." (Séneca)

Se tiveres um tempinho livre, lê que vale a pena.
Ler a República! 1oo anos … em 20 minutos, José Jorge Letria

O dia em que mataram o rei (adaptado)

Já passaram muitos anos, mas continuo a lembrar-me daquele primeiro dia de Fevereiro como se tivesse sido ontem. Eu tinha 10 anos e estava no Terreiro do Paço com os meus pais para ver a família real chegar de umas férias em Vila Viçosa. Nada sabia das crises políticas e dos conflitos que opunham os republicanos aos defensores da realeza, mas sabia que havia pobres muito pobres e ricos muito ricos, e que a família real estava no grupo dos segundos, o que provocava muito descontentamento no povo. Era tudo o que eu sabia.

Naquela tarde de 1908 fomos da nossa casa ao Terreiro do Paço, porque a minha mãe gostava de assistir ao espectáculo da realeza a mostrar-se ao povo nas ruas de Lisboa. Havia muita gente de olhos postos no rio, à espera de ver chegar o vapor com D. Carlos, a rainha e o filho mais velho a bordo, depois de terem viajado de comboio entre Vila Viçosa e o Barreiro. Em Lisboa tinha ficado D. Manuel, o filho mais novo de D. Carlos e D. Amélia, que aguardava a chegada da família. Havia também representantes da grande nobreza e altos funcionários administrativos. O que ali não faltava era pompa e cerimonial, como sempre acontecia quando o rei regressava a Lisboa.

O vapor chegou com atraso devido a um pequeno descarrilamento, no Alentejo, mas a multidão não quis arredar pé.

- Já os vejo ali à popa. O rei vem com o uniforme militar, e que bonito que ele é!

As palavras da minha mãe fizeram com que a minha atenção se concentrasse na família real. D. Carlos envergava o uniforme de marechal, com um boné debruado a ouro, a rainha vestia um bonito casaco negro com gola de pele e luvas brancas. O príncipe Luís Filipe envergava um sobretudo negro e chapéu alto. Era uma imagem bonita de se ver. A multidão agitou-se quando se deu conta de que o desembarque já não tardava. Ouviu-se um prolongado apito seco e dois homens colocaram a prancha de embarque para os passageiros ilustres poderem vir para terra. A multidão aplaudiu, mas sem entusiasmo. O meu pai agarrou a minha mão e levou-me para um local de onde eu pudesse ver tudo em pormenor. Primeiro saíram a rainha e o filho, que avançaram na direcção do outro príncipe que os esperava. Depois saiu o rei, recebido com honras militares e cumprimentos dos nobres e do primeiro-ministro João Franco, muito pouco popular entre as gentes do povo.

Das mãos de uma menina recebeu a rainha um vistoso ramo de flores, retribuído com um beijo. O rei falou durante alguns minutos com os seus colaboradores e, por fim, todos se encaminharam para uma carruagem, na qual iriam passar pela multidão a caminho do palácio. Junto de nós, um homem com alguma idade comentou:

- É pouco prudente da parte do rei fazer esta viagem numa carruagem aberta, porque os ânimos andam exaltados aqui por Lisboa e tem havido muitos atentados e prisões. Ele lá sabe, ele é o rei, por isso deve saber coisas que nós não sabemos.

O rei e os príncipes subiram para a carruagem e aguardaram a subida da rainha para se sentarem. D. Amélia levava as flores na mão e tinha um ar preocupado. Lembro-me desta movimentação como se tudo se tivesse passado ontem ainda.

Era um dia de Inverno, mas a temperatura estava amena e havia uma luminosidade que acentuava todos os detalhes. Ainda hoje, tantos anos passados, não consigo explicar como tudo aconteceu, porque foi demasiado rápido e porque a confusão não tardou a instalar-se. Ouviram-se tiros, a carruagem parou de repente, a multidão começou a gritar e os cavaleiros da guarda real cercaram o veículo para proteger o rei.

O meu pai puxou-me para um lugar seguro, debaixo das arcadas e cobriu-me com o seu sobretudo. A minha mãe colocou-se atrás dele. Num momento como aquele seria fácil sermos atingidos por uma bala perdida. Mesmo abrigado por detrás das arcadas, vi o bastante para jamais esquecer. Um homem de barba, com um joelho assente no chão, alvejou o rei, que tombou sobre a rainha, sangrando. Aparentava uma calma impressionante, mantendo a carabina apoiada no ombro. Tudo aconteceu em segundos, mas foi como se durasse uma eternidade. Um tenente da guarda desferiu-lhe um golpe que o deixou prostrado e já antes tinha sido atingido com uma bala numa perna. Entretanto, não se sabe de onde, apareceu um rapaz magro e pálido, de pistola em punho, que disparou várias vezes sobre o rei e o príncipe Luís Filipe.

As pessoas em fuga gritavam, aflitas. À nossa volta, havia muita gente em busca de refúgio. Passavam militares a cavalo e sentia-se grande desorientação e medo. O caos instalara-se no Terreiro do Paço numa tarde que todos esperavam que fosse de festa. Através dos vultos à minha frente consegui ver o príncipe Luís Filipe de revólver em punho, tentando acertar nos homens que alvejavam a carruagem. Por fim, também ele tombou, atingido por uma bala certeira disparada pelo homem da carabina.

Parecia-me, por absurdo que possa parecer, que o tempo corria veloz e com lentidão. Tudo se sucedia num ápice, mas parecia durar horas. Com grande rapidez, o cocheiro conduziu a carruagem para o recinto do Arsenal, com os membros da família real gravemente feridos. A comitiva dispersava-se e então ouviu-se gritar, não sei se de alegria, se de tristeza:

- O rei está morto! Mataram o rei!

O meu pai quis fugir à confusão, mas a minha mãe, lavada em lágrimas, quis assistir a tudo até ao fim. Fiz muitas perguntas ao meu pai, mas ele limitou-se a dizer-me:

- Ainda é muito cedo para sabermos o que vai acontecer. Anda muito ódio no ar…

Nunca mais me esqueci desta frase, que era a que melhor resumia o que se passara momentos antes. O meu pai era filho de um republicano e também ele tinha opiniões pouco favoráveis à política do reino. Uns dias antes ouvira-o dizer à minha mãe:

- Mal temos dinheiro para comer até ao fim do mês, mas o rei e a rainha gastam fortunas em caçadas, banquetes, férias e roupas. O rei muda de iate como quem muda de camisa e nós temos de nos resignar com o que se está a passar.

A minha mãe argumentava, defendendo a posição da monarquia, que achava que os reis tinham de manter uma imagem digna. Mas o meu pai discordava. Não achava bem a forma como o rei gastava dinheiro e parecia não se preocupar com o país.

Poucos dias depois desta conversa, ocorreu em Lisboa um levantamento revolucionário que deu origem a muitas prisões, entre elas do grão-mestre da Carbonária, organização a que pertenciam os dois homens que dispararam sobre a família real.

Aos 10 anos, eu tinha ainda muita dificuldade em relacionar estas coisas. Mas algo para mim ficara claro naquela tarde do dia 1 de Fevereiro: para ter acontecido aquela tragédia era preciso haver um grande descontentamento, embora eu achasse que ninguém tem o direito de roubar a vida a outro ser humano. Era esse descontentamento que originava as discussões entre os meus pais devido à falta de dinheiro. Eu, por exemplo, tinha o sonho de estudar e tornar-me engenheiro, para construir pontes e escolas. Mas o meu destino estava traçado. O meu pai já tinha garantido que depois da escola primária eu iria trabalhar como moço de recados na drogaria do nosso bairro. Os estudos eram para os filhos dos nobres e das famílias ricas. Eu fazia parte dos que ficavam a marcar passo para o resto da vida. E era também por isso que eu gostava de ficar a ver os barcos a chegarem e a partirem do Tejo, porque imaginava um dia viajar num deles em busca de uma vida melhor, no Brasil ou na América. Num tempo em que não era fácil ser-se criança em Portugal, este era o meu sonho de menino.

Sobre os homens que tinham disparado sobre a família real eu não sabia nada, mas fiquei a saber logo que saí da cama e obriguei o meu pai a ler-me as notícias do jornal. Fiquei a saber que o homem de barba, o da carabina, se chamava Manuel Buiça e o mais novo se chamava Alfredo Costa. O primeiro era professor do Colégio Nacional e o outro era empregado do comércio. Foram ambos os autores do regicídio, palavra que não fazia parte do meu vocabulário e que significa “assassinato de um rei”, como me disse o meu pai. Sei o que fizeram apenas pelo que disseram os jornais e por aquilo que o meu pai ouviu da boca de amigos republicanos com quem conversava no emprego e no café.

— O que mais me impressiona — disse eu ao meu pai — é a maneira como estes dois homens fizeram o que fizeram, sabendo que não saíam dali com vida…

— É porque tinham razões fortes para o fazer e também muita coragem. Confesso que não seria capaz de fazer o mesmo — desabafou o meu pai, sem esconder a sua admiração por eles.

— Já passaram muitos anos, mas ainda dou por mim muitas vezes a sonhar com o que aconteceu naquele dia. Naquela época eu já gostava muito de ler, mas em minha casa havia poucos livros, porque eram caros e o dinheiro para os comprar era pouco. Talvez por isso lhes dei tanto valor ao longo da vida.

— O que eu gostava mesmo era de ser escritor e de poder escrever um livro a contar como tudo sucedeu — disse eu ao meu pai.

— Quem me dera ter posses para poderes continuar a estudar. Mas infelizmente eu e a tua mãe não as temos. Quem sabe se um dia, depois de arranjares emprego, voltas a estudar e ainda vens a ser alguém.

Lembro-me também de dizer ao meu pai que gostava de escrever um livro que mostrasse aos leitores que não se pode ver apenas um dos lados das coisas. Naquele dia 1 de Fevereiro de 1908, os que foram assassinados eram vistos por muitos como os grandes culpados do atraso e da miséria do povo, embora muitos os considerassem vítimas inocentes. Por outro lado, os que mataram o rei e o príncipe eram vistos por muitos como terroristas assassinos, mas também havia quem os considerasse heróis da luta contra a opressão. Tudo depende da forma como observamos a realidade e como pensamos. As ideias contam sempre muito: para os republicanos, o regicídio foi um triunfo; para os monárquicos, foi uma tragédia nacional, um crime injusto. Há sempre dois rostos para cada verdade.

Depois de 1910, os republicanos puseram Portugal na primeira linha dos países do mundo com as leis que aprovaram e que deram mais liberdade, mais direitos e mais educação aos portugueses. Cometeram erros, mas fizeram muitas coisas boas e justas. Por tudo isso, devem ser lembrados e respeitados.

Ao longo da minha vida fui fazendo sempre a mesma pergunta: “Que ideal pôde levar dois homens jovens a matarem e a aceitarem ser mortos?” Ainda hoje procuro a resposta para esta pergunta. Certo dia olhei para um dos meus netos, que tinha a mesma idade que eu tinha quando presenciei o regicídio, e decidi escrever o relato do que então vi e senti naquele dia. E assim nasceu esta narrativa.

A partir daquele dia, passei a ser um menino de Lisboa que de repente se fizera homem, ao verificar que, na vida, nada é tão simples como parece. Eu estava lá, eu vi, e foi por isso que decidi contar-vos o que testemunhei naquele dia, sem falar de maus nem bons, de heróis ou de assassinos. Cada um que decida por si, sem nunca esquecer que os acontecimentos devem ser entendidos de acordo com a sua época e com os valores de todos os tempos.

Ainda hoje, quando adormeço, parece que sinto a mão do meu pai a apertar a minha com muita força. Depois vejo à distância o vapor a aproximar-se do cais e penso: “Há instantes que podem mudar as nossas vidas para sempre.”

Eu sei do que estou a falar. Porque estava lá, naquela tarde de sábado, de olhos postos no Tejo, a pensar que a felicidade era um brinquedo que nunca havia de se escapar das minhas mãos de menino a aprender os segredos e os mistérios da vida.

Aquele foi o dia em que mataram o rei.

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