sábado, 7 de maio de 2011

A Polegarzinha


Era uma vez uma mulher que desejava muito ter um filho, mas não sabendo como fazer para o conseguir, foi ter com o génio da floresta e disse-lhe:
— Queria ter um filho; diz-me o que devo fazer.
— Não é difícil — respondeu o génio. — Toma este grão de cevada, mas não é um grão de cevada como a que nasce nos campos ou a que se dá às galinhas. Mete-a num vaso de flores, e verás.
— Obrigada — disse a mulher. Depois, voltou para casa e semeou o grão de cevada.
Daí a poucos dias, viu sair da terra uma enorme flor, parecida com uma tulipa, mas ainda em botão.
— Que linda flor! — disse a mulher, beijando as pétalas vermelhas e amarelas. E, no mesmo instante, a flor abriu-se, fazendo muito barulho. Via-se agora que era realmente uma tulipa; mas no interior vermelho e branco estava sentada uma menina muito linda, da altura de um dedo polegar. Por isso, deram-lhe o nome de Polegarzinha.
Meteram-na dentro de um berço feito de uma casca de noz envernizada, com um colchão de folhas de violeta, e o cobertor era uma pétala de rosa. Durante a noite, a menina dormiu naquele berço, mas, no dia seguinte, já estava a brincar em cima da mesa onde a mulher punha um prato cheio de água com uma grinalda de flores à volta. Dentro do prato, boiava uma folha de tulipa onde a menina podia sentar-se e navegar de um lado ao outro, servindo-se, como remos, de duas crinas de cavalo branco.
Ficava encantadora assim, e depois, sabia cantar tão bem, que nunca se ouvira uma voz igual.
Certa noite, enquanto dormia, um horrível sapo entrou no quarto por um vidro partido e saltou para cima da mesa onde a Polegarzinha estava deitada no berço, coberta com a pétala de rosa.
— Que linda menina para o meu filho! — disse o sapo. Pegou na casca de noz, e, saltando pelo mesmo vidro partido, levou a menina para o jardim.
Havia ali um grande rio, que estava ligado por um braço de água a um pântano. E era nesse pântano que vivia o sapo com o filho. Sujo e viscoso, o filho era tal e qual o pai.
— Coac! Coac! Crrr-crr-crr! — coaxou ele, ao ver a linda menina dentro da casca de noz.
— Não fales tão alto, para não a acordares — disse o velho sapo. — Podia escapar-nos, porque é mais leve do que uma pena de cisne. Vamos pô-la sobre uma folha de nenúfar, mesmo no meio do rio. Assim, ficará numa verdadeira ilha, e já não poderá fugir. Entretanto, preparamos no fundo do pântano o quarto para as vossas núpcias.
Depois, o sapo saltou para dentro da água, escolheu uma enorme folha de nenúfar que estava presa ao fundo pelo pé, e pôs-lhe em cima a casca de noz onde dormia Polegarzinha.
Quando, no outro dia de manhã, a pobre menina abriu os olhos, viu onde estava e começou a chorar amargamente, porque se encontrava rodeada de água por todos os lados, e não podia voltar para terra.
O velho sapo, depois de ter enfeitado, com juncos e flores amarelas, o quarto nupcial no fundo do pântano, nadou, mais o filho, em direcção à folha onde estava Polegarzinha, para levar o berço de casca de noz para o quarto. Fez uma delicada vénia dentro de água em frente da menina e disse:
— Apresento-te o meu filho e teu futuro esposo. Preparei para vocês um quarto magnífico no fundo do pântano.
— Coac! Coac! Crrr-crr-crr! — acrescentou o filho.
Em seguida, pegaram no berço e afastaram-se, enquanto Polegarzinha ficava só, em cima da folha verde, chorando muito ao pensar naquele sapo tão feio, e no casamento horrível que a esperava.
Mas os peixes tinham ouvido o que dissera o sapo, e ficaram cheios de vontade de conhecer a menina. E assim que a viram, acharam-na logo mal empregada para casar com um sapo tão feio. Não podia ser! Então, juntaram-se em volta do pé que segurava a folha, cortaram-no com os dentes, e a folha soltou-se e levou a menina pelo rio abaixo, tão longe que os sapos não conseguiram apanhá-la.
Polegarzinha foi passando por diferentes sítios, e as aves dos bosques cantavam ao vê-la: “Que linda menina!” A folha continuava a boiar para longe, cada vez mais para longe. Era uma verdadeira viagem de recreio.
No caminho, uma enorme borboleta branca começou a bater as asas em volta dela e acabou por pousar na folha, cheia de espanto pela beleza da menina. Polegarzinha estava toda contente por ter escapado ao horrível sapo, e apreciava todas as maravilhas da natureza em seu redor, e a transparência da água, que o Sol fazia brilhar como prata. Tirou a fita que trazia à cintura, amarrou uma ponta à borboleta, a outra à folha, e avançou ainda mais depressa.
De repente, apareceu um grande besouro, e, ao vê-la, pegou nela com as patas e levou-a para cima de uma árvore.
Calcule-se o susto da pobre Polegarzinha quando o besouro a levou para cima da árvore! Este sentou-a na folha maior da árvore, ofereceu-lhe suco de flores, e, apesar de a menina não se parecer com um besouro, fez muitos elogios à sua beleza.
Daí a pouco, todos os outros besouros que viviam na mesma árvore vieram visitá-la. As meninas besouras, quando a viram, começaram a mexer muito as antenas e disseram:
— É aleijada! Só tem duas pernas.
— E não tem antenas — disse uma delas. — É tão magra, que parece um homem. Que horror!
Todavia, Polegarzinha era encantadora. Mas, apesar do besouro que a tinha raptado a achar linda, ao ouvir os outros, acabou por a considerar feia e não quis saber mais dela. Por isso, fizeram-na descer da árvore e deitaram-na em cima de um malmequer, deixando-a em liberdade.
A menina começou a chorar por os besouros a terem achado feia, mas as lágrimas tornavam-na mais linda do que nunca
Polegarzinha passou assim o Verão sozinha no interior da floresta. Fez uma cama com palhas e pendurou-a num ramo de árvore, ao abrigo da chuva. Alimentava-se do suco das flores e bebia o orvalho que escorria das folhas ao amanhecer.
Passou-se assim o Verão e o Outono; mas chegou o Inverno, um Inverno duro e rigoroso. Todas as aves que a tinham distraído com o seu canto desapareceram, as árvores ficaram nuas, as flores murcharam, e o ramo onde colocara a cama feita de palhas já não lhe oferecia abrigo.
A pobre menina sentia cada vez mais frio, porque as roupas que usava estavam em farrapos. Depressa chegou a neve, e cada floco que caía em cima dela gelava-a como se fosse um nevão. Ainda que se envolvesse com folhas secas, não conseguia aquecer. Quase morria de frio. Perto da floresta havia um grande campo de trigo, mas só restavam as hastes saindo da terra gelada. E foi para a menina como se caminhasse novamente pelo meio de uma floresta.
A tremer de frio, chegou à toca de um rato do campo. Entrava-se por um pequeno buraco, escondido entre as palhas. O rato estava bem instalado, tinha a despensa cheia de grãos, uma linda cozinha e uma sala de jantar. Polegarzinha apresentou-se à porta e pediu um grão de trigo, porque ainda não comera nada naquele dia.
— Pobre menina! — disse o velho rato do campo, que, no fundo, tinha bom coração. — Vem comer comigo lá dentro. Está muito quentinho.
Depois, simpatizou com Polegarzinha, e acrescentou:
— Deixo-te passar cá o Inverno, mas com a condição de teres o meu quarto sempre limpo e de me contares histórias bonitas. Eu adoro histórias.
A menina aceitou a proposta, e não se arrependeu.
— Vamos ter uma visita — disse um dia o velho rato. — O meu vizinho costuma visitar-me uma vez por semana. Ele ainda vive melhor do que eu: tem grandes salões e usa uma peliça de veludo. Se ele quisesse casar contigo, serias muito feliz, porque ele não vê nada, e assim podias fazer tudo o que te apetecesse. Conta-lhe as histórias mais bonitas que souberes.
Mas a Polegarzinha não estava interessada em casar com o vizinho, porque ele era uma toupeira. Coberta com a sua peliça de veludo negro, a toupeira não tardou a aparecer. Falou da sua riqueza e instrução, mas disse mal das flores e do Sol, porque nunca os tinha visto. Polegarzinha cantou-lhe várias canções, entre elas: Fui ao jardim Celeste e Rosa branca ao peito. A toupeira, encantada com a sua linda voz, quis logo combinar a data do casamento, mas a menina, que era uma pessoa de juízo, não respondeu que sim nem que não.
Para ser agradável aos vizinhos, a toupeira convidou-os para passearem, sempre que quisessem, no grande túnel que acabava de abrir entre duas das suas moradias, mas disse-lhes que não se assustassem com um pássaro morto que ali fora enterrado no princípio do Inverno.
A primeira vez que os vizinhos aceitaram o amável convite, a toupeira caminhou à sua frente por um corredor escuro e comprido, levando na boca um pedaço de madeira velha que espalhava reflexos fosforescentes, para os alumiar. Quando chegou ao sítio onde jazia o pássaro morto, arrancou com o focinho um bocado de terra do tecto da galeria, abrindo assim um buraco por onde entrou a luz. No meio do corredor estava estendido o corpo de uma andorinha, morta certamente de fome, com as asas unidas ao corpo, e a cabeça e os pés escondidos entre as penas. Este espectáculo impressionou muito Polegarzinha; ela gostava dos passarinhos, que durante todo o Verão a tinham alegrado com os seus cantos! Mas a toupeira empurrou a andorinha com as patas e disse:
— Esta já não canta mais! Que infelicidade ter-se nascido pássaro! Graças a Deus que os meus filhos estão livres de semelhante destino. Estas criaturas só passam o Verão a cantar, e durante o Inverno morrem de fome.
— Diz muito bem! — respondeu o velho rato. — Com cantigas ninguém se governa e acaba na miséria, e ainda há quem se gabe de saber cantar.
Polegarzinha não disse nada, mas assim que os outros dois voltaram as costas, inclinou- se sobre a ave, e, afastando as penas que lhe escondiam a cabeça, beijou-lhe as pálpebras fechadas.
— Talvez esta andorinha seja a mesma que cantou para mim o Verão passado; pobre andorinha, como eu tenho pena de ti!
A toupeira, depois de tapar o buraco, acompanhou as visitas a casa. Sem poder dormir toda a noite, Polegarzinha levantou-se e entrançou uma linda esteira de feno, levou-a para o túnel e estendeu-a sobre o passarinho morto. Depois, colocou-lhe debaixo da cabeça um bocado de algodão que encontrara na toca do rato, como se tivesse receio que a humidade fizesse mal àquele corpo morto.
— Adeus, andorinha, adeus para sempre! — disse ela.— Obrigada pelo teu canto, que me alegrava durante o Verão, quando eu podia admirar o verde do bosque e aquecer-me ao sol.
Dizendo estas palavras, encostou a cabeça ao peito da andorinha, mas levantou-se imediatamente, muito assustada. Tinha ouvido um leve bater: era o coração da ave, que não estava morta, mas apenas entorpecida, e que, com o calor, tornava a viver.
No Outono, as andorinhas voltam para os países quentes e, se alguma se atrasa no caminho, cai como morta e é coberta pela neve. Polegarzinha tremia ainda de medo; comparada com ela, que não tinha mais do que uma polegada de altura, a andorinha parecia um gigante. Mas encheu-se de coragem, apertou bem o algodão em volta da ave, foi buscar uma folha de hortelã, que lhe servia de manta, e pôs-lha por cima.
Na noite seguinte, quando se dirigiu de novo para junto da doente, encontrou-a viva, mas com tão poucas forças que mal abriu os olhos um instante para ver a menina, que levava, para se alumiar, apenas um bocado de madeira fosforescente.
— Obrigada, linda menina — disse a ave, com voz fraca. — Deste-me um pouco de calor. Em breve terei novamente forças para voar ao sol.
— Ainda faz muito frio lá fora — respondeu Polegarzinha. — A terra está gelada. Deixa-te ficar na cama. Eu tomo conta de ti.
Em seguida, trouxe-lhe água numa pétala de flor. A avezinha bebeu e contou-lhe como rasgara uma asa num arbusto cheio de espinhos, e não pudera seguir as companheiras até aos países quentes. Acabara por cair, e daí para diante não se lembrava de mais nada.
Durante todo o Inverno, às escondidas da toupeira e do rato, a menina tratou da andorinha com o maior cuidado. Quando chegou a Primavera, e o Sol começou a aquecer a terra, a ave disse adeus a Polegarzinha, que tornou a abrir o buraco feito pela toupeira no tecto. A andorinha pediu à menina que a acompanhasse até à floresta, montada nas suas costas. Mas Polegarzinha sabia que a sua partida causaria desgosto ao velho rato do campo.
— Não posso — disse ela.
— Então, adeus, adeus, linda menina! — respondeu a andorinha, voando ao sol. Polegarzinha viu-a partir, com lágrimas nos olhos; já gostava tanto daquela andorinha!
— Cuí-cuí ! — trinou ainda uma vez a andorinha, que depois desapareceu nos ares.
O desgosto de Polegarzinha foi ainda maior porque nunca mais pôde sair para a floresta e aquecer-se ao sol. O trigo crescia por cima da casa do rato do campo, e era para a menina, que tinha uma polegada de altura, uma verdadeira floresta.
— Este Verão vais fazer o teu enxoval — disse-lhe o rato, porque a toupeira da peliça negra tinha pedido a mão de Polegarzinha.
— Para casares com a toupeira, tens de estar bem fornecida de vestidos e roupas.
A menina foi obrigada a pegar na roca, e além disso o rato do campo contratou quatro aranhas que fiavam todo o dia sem descanso. À tarde, a toupeira visitava-os e falava-lhes do problema do Verão, que torna a terra abrasadora e insuportável. Por isso, o casamento só se faria no fim da estação. Entretanto, Polegarzinha ia todos os dias à porta, ao nascer e ao pôr do Sol, e olhava, através das espigas agitadas pelo vento, o azul do céu, admirando a natureza e pensando na sua querida andorinha; mas a andorinha estava longe, e talvez nunca mais voltasse.
Chegou o Outono, e Polegarzinha acabara o seu enxoval.
— Daqui a quatro semanas é o casamento! — disse-lhe o rato. E a pobre menina chorou, porque não queria casar com a toupeira.
— Que parvoíce! — exclamou o rato. — Não sejas teimosa, se não dou-te uma dentada. Devias ficar muito contente por casar com um animal que tem uma peliça que faria a inveja do próprio rei. Devias agradecer a Deus por ires ter uma cozinha e uma adega tão bem fornecidas.
E chegou o dia da boda.
A toupeira apresentou-se para levar Polegarzinha para debaixo da terra, onde ela não tornaria a ver o Sol, porque o marido não podia suportar a luz. Em casa do rato do campo, ao menos a menina podia ir até à porta.
— Adeus, amigo Sol! — disse ela, muito aflita, levantando os braços. — Adeus para sempre! Estou condenada a viver, daqui em diante, num buraco triste onde nunca mais sentirei o teu calor.
Depois, deu alguns passos para fora de casa, porque já tinham ceifado o trigo, e só restava o colmo.
— Adeus, adeus! — disse ela, abraçando uma florinha vermelha. — Se por acaso vires a andorinha, dá-lhe saudades da minha parte.
— Cuí-cuí ! — ouviu ela gritar no mesmo instante.
Levantou a cabeça e viu que era a andorinha que ia a passar. A ave sentiu a maior alegria ao ver Polegarzinha; desceu rapidamente, repetindo o seu alegre cuí-cuí, e veio pousar junto da sua benfeitora. A menina contou-lhe que queriam obrigá-la a casar com a toupeira, que vivia debaixo da terra, onde nunca entrava o Sol. Enquanto dizia isto, chorava lágrimas em fio.
— Está a chegar o Inverno — disse a andorinha. — Volto para os países quentes; queres vir comigo? Sobes para as minhas costas e amarras-te bem pela cintura. Fugiremos para bem longe dessa toupeira e da escuridão da casa dela, para lá das montanhas, onde o Sol ainda é mais brilhante do que aqui, onde o Verão e as flores são eternos. Vem comigo, linda amiga, tu, que me salvaste a vida, quando eu estava enterrada naquele túnel sombrio, meio morta de frio.
— Sim, vou contigo! — disse Polegarzinha. E sentou-se nas costas da ave e amarrou o cinto a uma das penas mais fortes da andorinha. Depois, foi levada por sobre a floresta e o mar, e as altas montanhas cobertas de neve.
Polegarzinha sentiu frio; mas aconchegou-se debaixo das penas quentes da ave, espreitando só com a cabeça para admirar as belezas que deslizavam lá em baixo.
Foi assim que chegaram aos países quentes, onde as vinhas, com os seus cachos vermelhos e amarelos, crescem por toda a parte, onde se vêem extensos pomares de limoeiros e laranjeiras, onde mil plantas maravilhosas exalam os seus perfumes. Ao longo das estradas, as crianças corriam atrás de borboletas multicores.
Um pouco mais adiante, a andorinha parou junto de um lago azul onde se espelhava um antigo castelo de mármore, rodeado de colunas cheias de parreiras. No alto havia uma quantidade de ninhos.
Um destes ninhos pertencia à andorinha que levava a menina.
— Aqui tens a minha casa — disse a ave. — Mas não é conveniente que fiques a morar comigo. Além disso, não estou preparada para te receber. Escolhe tu mesma uma flor que te agrade. Levo-te até lá, e farei os possíveis para que passes um tempo agradável.
— Que bom! — respondeu Polegarzinha, batendo palmas.
Enormes flores brancas, lindíssimas, cresciam por entre os restos de uma coluna caída, e foi numa dessas flores que a andorinha deixou ficar a menina.
Polegarzinha estava radiante com toda a beleza que a rodeava naquele lugar encantador.
Mas, qual não foi o seu espanto, quando, sentado no meio da flor, viu um homem vestido de branco e transparente como o vidro, que não tinha mais do que uma polegada de altura. O homenzinho usava uma coroa na cabeça, e das costas saíam-lhe duas asas brilhantes.
Era o génio da flor; cada flor servia de palácio a um homem e a uma mulher muito pequeninos. E aquele era o rei de todos os outros.
— Como ele é bonito! — disse Polegarzinha à sua amiga.
Ao ver a ave, que lhe pareceu enorme, o principezinho primeiro assustou-se, mas encheu- se de coragem ao ver Polegarzinha, que achou a menina mais linda do mundo. Pôs-lhe na cabeça a sua coroa de ouro, perguntou-lhe como se chamava, e se ela queria casar-se com ele. Que marido, em comparação com o sapo e com a toupeira da peliça negra! Aceitando-o, tornava-se a rainha das flores!
Por isso, aceitou-o, e daí a pouco recebia a visita de uma multidão de senhores e damas que saíam de todas as flores para lhe oferecerem presentes. Mas o que lhe deu maior prazer foi um par de asas transparentes que tinham pertencido a uma grande mosca verde. Puseram-lhas nas costas e, assim, Polegarzinha pôde voar de flor em flor.
Entretanto, a andorinha, no alto da latada, trinava as suas mais lindas canções; mas sentia no fundo do coração uma enorme pena por ser obrigada a separar-se da sua benfeitora.
— Nunca mais te chamarás Polegarzinha — disse-lhe o génio da flor. — Esse nome é muito feio, e tu és bonita, tão bonita como deve ser a rainha das flores. A partir de hoje, passarás a chamar-te Maia.
— Adeus, adeus! — disse a andorinha, voando em direcção à Dinamarca.
E quando lá chegou, foi direita ao ninho que deixara no beiral da janela onde o autor destes contos esperava o seu regresso.
— Cuí-cuí! — trinou ela.
E foi assim que eu fiquei a saber esta história.
Contos de Andersen
Porto, Ed. AMBAR, 2002

As roupas novas do imperador

Há muitos anos havia um imperador que achava que roupas finas e novas eram tão importantes que nelas gastava todo o seu dinheiro. Não se preocupava com o seu exército, ou em ir ao teatro, ou em caçar na floresta, a não ser que isso representasse uma oportunidade para exibir as suas vestimentas novas. Tinha um fato diferente para cada hora do dia, e em vez de se dizer, em relação ao imperador, “Ele está reunido em conselho”, dizia-se, “Ele está no quarto de vestir”.
A grande cidade onde vivia era muito próspera e visitada diariamente por muitas pessoas. Um dia, contudo, chegaram à cidade dois aldrabões que se diziam tecelões e afirmavam fazer o tecido mais bonito que se podia imaginar. Não só eram as cores e o padrão do tecido invulgarmente bonitos, afirmavam, mas também as roupas com ele feitas tinham a maravilhosa propriedade de ficarem invisíveis aos olhos de quem não fosse competente no seu ofício ou de quem fosse particularmente estúpido.
— Essas roupas devem ser realmente maravilhosas! — pensou o imperador. — Se eu tivesse uma vestimenta assim, poderia saber quem é que nas minhas terras não é competente para a posição que ocupa. Poderia distinguir quem é esperto e quem é estúpido! Tenho de encomendar imediatamente esse tecido para mim!
E deu imenso dinheiro aos dois aldrabões para que começassem a trabalhar. Assim, eles montaram dois teares e fizeram de conta que estavam a trabalhar, mas na realidade não estavam a fazer nada. Disseram que precisavam da seda mais fina e do fio de ouro mais precioso, mas guardaram tudo para eles e continuaram a trabalhar nos teares vazios, até de madrugada.
— Como é que estará o meu tecido? — interrogou-se o imperador.
Contudo, sentiu-se ligeiramente receoso quando se lembrou de que todos os que fossem estúpidos ou incompetentes no seu trabalho não conseguiriam vê-lo; ele achava que, pela sua parte, não precisava de ter medo. Em todo o caso, resolveu mandar alguém ver como é que o trabalho estava a decorrer.
Todos os habitantes da cidade foram informados do maravilhoso poder do tecido e estavam ansiosos por descobrir se os seus vizinhos eram espertos ou estúpidos.
— Vou mandar o meu velho e honrado ministro fazer uma visita aos tecelões — pensou o imperador. — É a pessoa mais adequada para ver como está o tecido, pois é muito esperto e ninguém é melhor do que ele no seu trabalho.
E o velho e honrado ministro lá se dirigiu à sala onde os dois aldrabões estavam sentados a trabalhar nos seus teares vazios.
— Deus me valha! — pensou o velho ministro, arregalando os olhos. — Não consigo ver absolutamente nada! — mas calou-se.
Os dois aldrabões convidaram-no a aproximar-se. O padrão não era muito requintado? — perguntaram eles. E as cores não eram bonitas? À medida que falavam, iam apontando para o tear vazio, e o pobre do velho ministro continuava perplexo, não conseguindo ver nada, pois não havia nada para ver.
— Meu Deus! — pensou ele. — Será que sou estúpido? Nunca tinha pensado nisso. Bom, o que é certo é que ninguém pode ficar a saber disto! Será que não sou competente no meu trabalho? Nunca poderei dizer que não consigo ver o tecido!
— O senhor não diz nada? — perguntou um dos aldrabões, ao mesmo tempo que fingia continuar a tecer.
— Oh, sim! É fabuloso! Uma maravilha! — retorquiu o velho ministro, espreitando através dos óculos. — Que padrão! E as cores! Claro que vou dizer ao imperador que gostei imenso, de verdade!
— Estamos muito contentes por o ouvir dizer isso! — disseram os dois tecelões, e então puseram-se a falar das cores e a descrever o invulgar padrão. O velho ministro escutou com muita atenção, de modo a poder contar tudo, mais tarde, ao imperador, e assim aconteceu.
Os dois aldrabões pediram então mais dinheiro e mais seda e fio de ouro, dizendo que precisavam de mais materiais para a tecelagem. Claro que guardaram tudo para eles e continuaram a tecer nos seus teares tão vazios como anteriormente.
Pouco tempo depois, o imperador enviou outro honrado funcionário. Este olhou, olhou, mas como não havia nada nos teares, também ele não conseguiu ver nada.
— É ou não um belo tecido? — perguntaram ambos os aldrabões e, fazendo de conta que estavam a mostrar-lho, descreveram o belo padrão que, evidentemente, não existia.
— Tenho a certeza, eu não sou estúpido! — pensou o funcionário. — Por isso, devo ser incompetente no meu ofício! Isto é de facto estranho, mas não posso deixar que alguém saiba!
E assim, elogiou o tecido que não conseguia ver e referiu o quanto gostava das lindas cores e do bonito padrão.
— Na realidade, é de um gosto requintado! — confirmou ao imperador.
Todas as pessoas da cidade falavam daquele maravilhoso tecido e o imperador quis vê-lo com os seus próprios olhos enquanto ainda estava no tear. Fez então uma visita aos aldrabões, levando uma selecta comitiva, na qual se incluíam os dois honrados cavalheiros que já antes lá tinham ido. Os dois malandros teciam com toda a energia, apesar de não haver um único fio no tear.
— Não acha soberbo? — perguntaram o ministro e o funcionário. — Vossa Majestade repare só naquele padrão e naquelas cores!
E apontavam para o tear vazio, como se acreditassem que todos os outros conseguiam realmente ver o tecido.
— Meu Deus! — pensou o imperador. — Não consigo ver absolutamente nada! Isto é terrível! Serei estúpido? Não valho nada como imperador? Era a pior coisa que me podia acontecer!
No entanto, em voz alta, apenas disse:
— Oh, sim, é muito bonito! Gosto mesmo muito dele! — e abanou a cabeça em sinal de aprovação, olhando na direcção do tear vazio. Não queria, de modo nenhum, admitir que não conseguia ver absolutamente nada. Toda a comitiva que viera com ele olhou e tornou a olhar, mas não conseguia ver mais do que o ministro e o funcionário tinham visto, ou seja, nada. Contudo, imitaram o imperador e disseram:
— Na realidade, é lindíssimo!
E aconselharam-no a fazer um fato com aquele tecido, para vestir na grande procissão que iria realizar-se em breve. E todos exclamavam, uns a seguir aos outros:
— Soberbo! Requintado! Magnífico!
Ninguém deixou de comentar como o tecido era bonito, e o imperador deu então aos dois aldrabões medalhas para pendurarem na lapela e ordenou-os Cavaleiros do Tear.
Os dois astutos aldrabões estiveram a pé toda a noite na véspera da procissão, com dezasseis lâmpadas acesas, e toda a gente podia ver como eles estavam a trabalhar arduamente para conseguirem acabar a tempo as roupas novas do imperador. Fingiram que estavam a tirar o tecido do tear, agitaram a tesoura no ar como se estivessem a cortar e coseram atarefadamente com agulhas sem linha. Por fim, disseram:
— Vejam, as roupas estão prontas!
Chegou então o próprio imperador, com os seus mais distintos cortesãos, e os dois aldrabões levantaram os braços como se estivessem a segurar em alguma coisa.
— Aqui estão as calças! — disseram eles. — E aqui está o casaco! E o manto! E acrescentaram: — É tão leve como uma pena! Chega-se mesmo a pensar que não se traz nada vestido, mas aí é que está a beleza destas roupas!
— Sem dúvida nenhuma! — concordaram todos os cortesãos, apesar de não conseguirem ver nada, pois não havia nada para ver.
— Quer vossa Majestade fazer a fineza de despir as suas roupas? — pediram os aldrabões. — Assim, podemos vestir-lhe a roupa nova ali à frente daquele espelho grande!
E assim, o imperador despiu tudo e os dois aldrabões fingiram que estavam a vestir-lhe a roupa nova que supostamente teriam feito, puxando daqui, puxando dali, endireitando a cauda do manto, enquanto o imperador se virava e pavoneava em frente do espelho.
— Mas que roupas tão bonitas! — exclamaram todos. — Como assentam bem! E que padrão! Que cores! Na realidade, é um fato sumptuoso!
— O pálio sob o qual Vossa Majestade caminhará na procissão, já está lá fora —disse o mestre de cerimónias.
— Já estou pronto! — afirmou o imperador. — Assentam-me mesmo bem as roupas!
E mais uma vez deu uma volta em frente do espelho, fingindo que estava a admirar as belas roupas.
Os camareiros que iriam segurar na cauda tactearam desajeitadamente o chão como se estivessem a levantá-la e depois fizeram de conta que seguravam nela. Também eles estavam com medo que alguém reparasse que eles não conseguiam ver nada.
E assim caminhou o imperador, em procissão debaixo do majestoso pálio. Todas as pessoas que estavam na rua e à janela exclamavam:
— Oh! Como são maravilhosas as roupas novas do imperador! Que belo manto ele leva sobre o casaco! Como lhe fica bem!
Ninguém queria que pensassem que não conseguiam ver nada, pois isso significaria que ou eram estúpidos ou incompetentes no seu trabalho. Nenhuma outra roupa do imperador tinha alguma vez sido tão gabada como esta.
— Ah! O imperador vai nu! — exclamou uma criança.
— É apenas a voz da inocência! — desculpou-se o pai da criança.
Mas as pessoas começaram a passar palavra umas às outras, acerca do que a criança tinha dito.
— O imperador vai nu! Aquela criança ali afirma que o imperador vai nu!
Par fim, já todas as pessoas gritavam:
— O imperador vai nu!
O imperador sentiu-se embaraçado, pois no fundo pensava que eles tinham razão, mas disse para si próprio:
— Tenho de manter-me firme até ao fim da procissão.
E assim prosseguiu, ainda mais emproado do que antes, e os camareiros continuaram a segurar na cauda que não existia.
Contos de Andersen
Porto, Ed. AMBAR, 2002

A menina e o pássaro encantado

Era uma vez uma menina que tinha um pássaro como seu melhor amigo.
Ele era um pássaro diferente de todos os demais: era encantado.
Os pássaros comuns, se a porta da gaiola ficar aberta, vão-se embora para nunca mais voltar. Mas o pássaro da menina voava livre e vinha quando sentia saudades… As suas penas também eram diferentes. Mudavam de cor. Eram sempre pintadas pelas cores dos lugares estranhos e longínquos por onde voava. Certa vez voltou totalmente branco, cauda enorme de plumas fofas como o algodão…
— Menina, eu venho das montanhas frias e cobertas de neve, tudo maravilhosamente branco e puro, brilhando sob a luz da lua, nada se ouvindo a não ser o barulho do vento que faz estalar o gelo que cobre os galhos das árvores. Trouxe, nas minhas penas, um pouco do encanto que vi, como presente para ti…
E, assim, ele começava a cantar as canções e as histórias daquele mundo que a menina nunca vira. Até que ela adormecia, e sonhava que voava nas asas do pássaro.
Outra vez voltou vermelho como o fogo, penacho dourado na cabeça.
— Venho de uma terra queimada pela seca, terra quente e sem água, onde os grandes, os pequenos e os bichos sofrem a tristeza do sol que não se apaga. As minhas penas ficaram como aquele sol, e eu trago as canções tristes daqueles que gostariam de ouvir o barulho das cachoeiras e ver a beleza dos campos verdes.
E de novo começavam as histórias. A menina amava aquele pássaro e podia ouvi-lo sem parar, dia após dia. E o pássaro amava a menina, e por isto voltava sempre.
Mas chegava a hora da tristeza.
— Tenho de ir — dizia.
— Por favor, não vás. Fico tão triste. Terei saudades. E vou chorar…— E a menina fazia beicinho…
— Eu também terei saudades — dizia o pássaro. — Eu também vou chorar. Mas vou contar-te um segredo: as plantas precisam da água, nós precisamos do ar, os peixes precisam dos rios… E o meu encanto precisa da saudade. É aquela tristeza, na espera do regresso, que faz com que as minhas penas fiquem bonitas. Se eu não for, não haverá saudade. Eu deixarei de ser um pássaro encantado. E tu deixarás de me amar.
Assim, ele partiu. A menina, sozinha, chorava à noite de tristeza, imaginando se o pássaro voltaria. E foi numa dessas noites que ela teve uma ideia malvada: “Se eu o prender numa gaiola, ele nunca mais partirá. Será meu para sempre. Não mais terei saudades. E ficarei feliz…”
Com estes pensamentos, comprou uma linda gaiola, de prata, própria para um pássaro que se ama muito. E ficou à espera. Ele chegou finalmente, maravilhoso nas suas novas cores, com histórias diferentes para contar. Cansado da viagem, adormeceu. Foi então que a menina, cuidadosamente, para que ele não acordasse, o prendeu na gaiola, para que ele nunca mais a abandonasse. E adormeceu feliz.
Acordou de madrugada, com um gemido do pássaro…
— Ah! menina… O que é que fizeste? Quebrou-se o encanto. As minhas penas ficarão feias e eu esquecer-me-ei das histórias… Sem a saudade, o amor ir-se-á embora…
A menina não acreditou. Pensou que ele acabaria por se acostumar. Mas não foi isto que aconteceu. O tempo ia passando, e o pássaro ficando diferente. Caíram as plumas e o penacho. Os vermelhos, os verdes e os azuis das penas transformaram-se num cinzento triste. E veio o silêncio: deixou de cantar.
Também a menina se entristeceu. Não, aquele não era o pássaro que ela amava. E de noite ela chorava, pensando naquilo que havia feito ao seu amigo…
Até que não aguentou mais.
Abriu a porta da gaiola.
— Podes ir, pássaro. Volta quando quiseres…
— Obrigado, menina. Tenho de partir. E preciso de partir para que a saudade chegue e eu tenha vontade de voltar. Longe, na saudade, muitas coisas boas começam a crescer dentro de nós. Sempre que ficares com saudade, eu ficarei mais bonito. Sempre que eu ficar com saudade, tu ficarás mais bonita. E enfeitar-te-ás, para me esperar…
E partiu. Voou que voou, para lugares distantes. A menina contava os dias, e a cada dia que passava a saudade crescia.
— Que bom — pensava ela — o meu pássaro está a ficar encantado de novo…
E ela ia ao guarda-roupa, escolher os vestidos, e penteava os cabelos e colocava uma flor na jarra.
— Nunca se sabe. Pode ser que ele volte hoje…
Sem que ela se apercebesse, o mundo inteiro foi ficando encantado, como o pássaro. Porque ele deveria estar a voar de qualquer lado e de qualquer lado haveria de voltar. Ah!
Mundo maravilhoso, que guarda em algum lugar secreto o pássaro encantado que se ama…
E foi assim que ela, cada noite, ia para a cama, triste de saudade, mas feliz com o pensamento: “Quem sabe se ele voltará amanhã….”
E assim dormia e sonhava com a alegria do reencontro.

As mais belas histórias de Rubem Alves, Lisboa, Edições Asa, 2003
O pastor de nuvens e outras histórias

A ternura é assim como uma coisa que se sente quando olhamos para alguém ou nos olham de um modo muito carinhoso, quando dizemos ou nos dizem palavras amigas iguais às que esperávamos, quando nos fazem, por exemplo, uma festa no cabelo. A mãe que aperta o filho pequenino nos braços fá-lo com ternura. Ou, quando a um canto do recreio vemos um amigo com ar triste e o vamos buscar, lhe pomos a mão nos ombros e o trazemos para que não esteja sozinho nem triste, isso é ternura. Uma palavra muito bonita.
A ternura é assim como uma daquelas fadas das histórias que ouvimos contar e ficamos a pensar se existe. Daquelas que com um toque de varinha mágica tudo mudam. Mas a ternura existe mesmo, é uma fada real. Se quiséssemos desenhá-la, teríamos de desenhar uma rapariga pequena, porque a ternura dá muita importância às coisas pequeninas que só se vêem se uma pessoa estiver com muita atenção. Se não, não se vê nada. Por isso, ela tem os olhos muito abertos, os ouvidos à escuta e na boca um sorriso. Ternura.
Tudo isto para vos contar esta história. É que foi com certeza a pensar na ternura, nessa pequena fada tão importante na nossa vida, que o Miguel, um dia de manhã, no quarto dos pais (ele costumava todos os dias ir até lá um bocadinho), disse para a mãe:
— Sabes, mãe, eu gostava de ter era um bichinho de pêlo.
A mãe achou muita graça àquilo e ao mesmo tempo ficou admirada, e o pai que estava a dormitar ouviu também.
— Um bichinho de pêlo?! Para que é que tu queres um bichinho de pêlo?
Mas o Miguel não explicou logo.
— Sim — disse ele —, eu gostava tanto! Um bichinho de pêlo só para mim.
O Miguel morava no terceiro andar de um prédio alto, um desses prédios de cimento, e tinha mais cinco irmãos além de outros quatro que não moravam ali. Era muita gente, mas davam-se todos muito bem. O que é, é que o Miguel era o mais pequeno, tinha só nove anos, e fazia uma grande diferença dos outros que tinham 16… 17… 19… 21… E por isso, com essa gente de muitos mais anos, nem sempre era fácil conversar. Mas com um bichinho de pêlo, pequeno como ele…, pensava o Miguel.
A mãe contou aos outros irmãos o desejo do Miguel e todos acharam graça. E os dias passaram, até que o Acaso (o Acaso é assim um senhor que não se vê mas que intervém às vezes na nossa vida, sobretudo se desejamos muito uma coisa e pensamos nela) interveio.
Um dia, ao fim da tarde, estava a mãe do Miguel na cozinha a preparar o jantar e as irmãs no quarto a prepararem as lições para o dia seguinte, quando sorridente o Miguel entrou em casa seguido dos amigos, o To, o Paulo e o Paulito. Vinham todos afogueados de correr e ao mesmo tempo entusiasmados, pois traziam com eles um gato muito pequeno e magricela de pêlo castanho e olhinhos verdes.
— Mãe! Mãe! — chamou o Miguel.
— Que é? — disse a mãe, vindo à sala ter com ele.
— Olha o que nós encontrámos! — e mostrava a mão que segurava o gato. Ao princípio a mãe zangou-se:
— Não vais trazer isso aqui para casa, pois não? Já tenho muito que limpar e o gato ainda daria mais trabalho.
A mãe dava aulas e ainda tinha de arrumar a casa e fazer o comer. Mas o Miguel, todo contente com o seu achado, pediu, pediu: «Ele não suja! — disse. — Deixa lá, mãe» teimou, e até os amigos pela voz do Tó (o Tó tinha em tempos escrito um postal ao Miguel a dizer que ele era o seu melhor amigo, que a seguir vinham o Paulo e o Paulito, mas que não tinha últimos amigos) intercederam junto à mãe do Miguel:
— Nós ajudamos a tratar dele. Limpamos o que ele sujar.
E perante esta embaixada tão insistente, as sobrancelhas da mãe do Miguel ergueram-se e ela sorriu. E o Miguel sabia bem o significado daquele sorriso, isto é, foi logo arranjar um pratinho de leite para o gato. Um bichinho de pêlo.
E o gato ficou. «É uma gata — explicava o Miguel às irmãs — e chama-se Sapinha.» Elas riram-se «Sapinha! Ela que se livrasse de ir para o nosso quarto sujar!», ainda disse a irmã do meio. Mas o Miguel não ligou. Ele sabia que iria proteger o seu bichinho de pêlo. Ao princípio, a Sapinha tinha medo das pessoas e metia-se debaixo dos móveis. Não se atrevia a deitar a cabeça de fora e era preciso ir lá buscá-la. Estava num meio estranho, desconhecido. Foi preciso dar-lhe um banho para que o seu pêlo castanho ficasse limpo, cor de mel, e papo branco. Mas a pouco e pouco, com os mimos todos que lhe faziam, foi ganhando confiança e conhecendo os cantos à casa e os olhos às pessoas. Gostava de ir para a varanda, empoleirar-se ao sol no parapeito, a olhar para baixo para o pátio ou para as casa e campos em frente, a cheirar as sardinheiras dos vasos, a seguir o voo das moscas. Tudo o que mexia era para ela motivo de atenção. Punha-se logo em posição de ataque, de pernas duras a preparar o salto. À noite o Miguel levava-a para a sua cama que era no cimo de um beliche, fazia-lhe festas sem fim a que ela correspondia com lambidelas amigas e depois ficava enroscada aos pés da cama. A casa mergulhava então no silêncio, o irmão mais velho apagava a luz e o Miguel podia ver os olhos brilhantes da Sapinha no escuro.
Na zona onde morava o Miguel muitas vezes faltava a água. Horas e horas. E a água era muito precisa para lavar e cozinhar. Uma noite, alguém deixou uma torneira aberta e a água encheu a banheira, transbordou, e saindo do quarto de banho ameaçava inundar o resto da casa. Ora a Sapinha, com os seus olhinhos de ver no escuro, pressentiu o perigo e pôs-se a miar, a miar, e a esfregar as patas na cara do irmão mais velho, que dormia por baixo do Miguel no beliche, até que ele acordou. A Sapinha continuava a miar e a mexer-se.
«Que é que quer a gata?», pensou ele. Levantou-se e viu que a água, inundando o corredor, entrava já pela frincha da porta do quarto e correu a fechar a torneira. Foi o que valeu.
A Sapinha tinha evitado uma inundação e por isso ganhou fama de bichinho esperto. O Miguel contou aos seus amigos, o To, o Paulo e o Paulito e a toda a vizinhança o que a Sapinha tinha feito e o caso foi muito falado. A Sapinha era uma heroína.
Um dia, a senhora Graça, mulher-a-dias que ia às vezes fazer serviço de limpeza lá em casa, disse para a irmã mais velha:
— Sabe, menina?, a gata não é uma gata, é um gato.
Era verdade.
Quando o Miguel soube disto ficou muito triste. Ele acostumara-se a chamar-lhe Sapinha, o bichinho de pêlo só para si. Agora um gato! E durante algum tempo queria que as irmãs continuassem a chamar-lhe gata Sapinha, senão não deixava ninguém pegar-lhe. Mas depois pensou, pensou e disse para si: «Gato ou gata, que interessa se é um bichinho de pêlo?!»
Era de novo a ternura, aquela fada real de que vos falei no princípio desta história, aqui sob a forma dum gato cor de mel e papo branco e de um menino que queria ter um bichinho de pêlo só para si, mas que aparece muitas vezes na nossa vida, sob outras formas se nós quisermos. E ainda bem, porque a ternura faz muita falta.

Inácio Pignatelli, Lisboa, Editorial Verbo, 1985




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