Aqui ficam alguns poemas...
Vitorino Nemésio
A concha
A minha casa é concha.
Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a
sonho e lixos,
O horto e os muros só
areia e ausência.
Minha casa sou eu e os
meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma
varanda, vence-a
O sal que os santos
esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e
escadarias
Frágeis, cobertas de
hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento,
as salas frias.
A minha casa... Mas é
outra a história:
Sou eu ao vento e à
chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de
memória.
|
Miguel Torga
Segredo
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um
passarinho
Novo.
Mas escusam de me
atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…
In Diário VIII
|
António Ramos Rosa
Não posso adiar o amor
para outro século
não posso
ainda que o grito
sufoque na garganta
ainda que o ódio estale
e crepite e arda
sob as montanhas
cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este
braço
que é uma arma de dois
gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese
séculos sobre as costas
e a aurora indecisa
demore
não posso adiar para outro
século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de
libertação
Não posso adiar o
coração
|
Eugénio de Andrade , As
palavras
São como um cristal,
as palavras.
Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.
Secretas vêm, cheias de
memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.
Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram
ainda.
Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas
puras?
In Coração do Dia
|
David Mourão-Ferreira, E
por vezes
E por vezes as noites
duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em
poucos meses
o que a noite nos fez em
muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos
que por vezes
Alexandre O’Neill
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra “amigo”.
“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta,
que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
“Amigo” (recordam-se,
vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de
inimigo!
“Amigo” é o erro
corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada,
praticada.
“Amigo” é a solidão
derrotada!
“Amigo” é uma grande
tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo
fértil,
“Amigo” vai ser, é já
uma grande festa!
…………………………………………..
Leva-me
os olhos, gaivota,
e
deixa-os cair lá longe naquela ilha sem rota...
Lá...
onde os cravos
e os jasmins
nunca se
repetem nos jardins...
Lá...
onde
nunca a mesma aranha tece a mesma teia
na mesma
escuridão das mesmas casas...
Lá...
onde
toda a noite canta uma sereia
e a lua tem
asas...
Lá...
José
Gomes Ferreira
Um sofrimento parecia
revelar
a vida ainda mais a estranha dor de que se perca o que facilmente se perde o silêncio as esplanadas da tarde a confidência dócil de certos arredores os meses seguidos sem nenhum cálculo por vezes é tão criminoso não percebermos uma palavra, uma jura, uma alegria Autor: José Tolentino Mendonça |
ao tomarmos o gosto aos
oceanos
só o sarro das noites
não dos meses
lá no fundo dos copos
encontramos
E por vezes sorrimos ou
choramos
E por vezes por vezes ah
por vezes
num segundo se evolam tantos anos , In Obra Poética
David Mourão-Ferreira
Barco negro
De manhã, que medo
que me achasses feia.
Acordei, tremendo,
deitada n’areia.
Mas logo os teus olhos
disseram que não
e o sol penetrou
no meu coração.
Vi depois, numa rocha,
uma cruz
e o teu barco negro
dançava na luz.
Vi teu braço acenando,
entre as velas já
soltas.
Dizem as velhas da praia
que não voltas.
São loucas! São loucas!
Eu sei meu amor
que nem chegaste a
partir
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre
comigo.
No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
nos barcos vazios,
dentro do meu peito
– ‘stás sempre comigo!
Fernando Pessoa
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha
alma.
E é tão lento o teu
soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira
pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas
perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um
sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu
aberto,
Sinto mais longe o
passado,
Sinto a saudade mais
perto.
|
Alexandre O’Neill |
Almeida Garrett
– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das
estrelas...
Vi entre a névoa da
terra,
Outra luz mais bela que
elas.
E as minhas asas
brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao
céu.
Cegou-me essa luz
funesta
De enfeitiçados
amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de
dores!
– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus
amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas
brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
,
In Flores sem Fruto
|
Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor, saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste (e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.
Autor :Maria do
Rosário Pedreira
Em todas as
ruas te encontro
Em todas as
ruas te encontro
em todas as
ruas te perco
conheço tão bem
o teu corpo
sonhei tanto a
tua figura
que é de olhos
fechados que eu ando
a limitar a tua
altura
e bebo a água e
sorvo o ar
que te
atravessou a cintura
tanto
tão perto tão real
que o meu corpo
se transfigura
e toca o seu
próprio elemento
num corpo que
já não é seu
num rio que
desapareceu
onde um braço
teu me procura
Em todas as
ruas te encontro
em todas as
ruas te perco
Autor : Mário
Cesariny
Bichinho-de-conta
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta contou
que um dia
se enrolou
e parecia
um berlinde pequenino
de tal maneira
que um menino
de brincadeira
com ele jogou…
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta
contou.
Sidónio Muralha
|
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.
Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.
Autor:Maria
Teresa Horta
António Victor Ramos Rosa
17 de Outubro de 1924 - 23 de
Setembro de 2013
Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio.
As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga.
A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais.
Nada se cria.
Vamos e vimos.
Algo inunda, incendeia, recomeça.
Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.
Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair
Autor:Antonio
Ramos Rosa
Já rebentei de correr
Sete cavalos a fio. O primeiro era cinzento Com sonhos de água sem fundo E cor do norte o segundo Com ferraduras de prata. O terceiro era um mistério E o quarto cor de agonia. O quinto, de olhos em brasa, Era só prata e espanto. O sexto não se sabia Se era cavalo, se vento. Corria o sétimo tanto Que nem a cor se lhe via. Quanto mais ando mais meço As distâncias que há em mim Cada desejo é um fim E cada fim um começo. Autor:Armindo Rodrigues |
Papagaio , Sidónio
Muralha
O
papagaio é,
É, como
muitas pessoas,
Um
bicho que faz banzé
E que
põe no mesmo pé
Coisas
más e coisas boas….
E como
tudo o que diz,
O diz
gritando, é pedante,
E é um
bichinho feliz
Talvez
por ser ignorante.
Diz
não, mas repete sim.
Diz
sim, mas repete não.
Só
pensa no amendoim
E é um
grande comilão.
E como
põe energia
Quando
diz tudo e diz nada
Faz parte da academia
Da
ilustre bicharada
E nos
discursos que faz,
Faz uma
tal confusão,
Que
nenhum bicho é capaz
De saber quem tem razão.
Porque
o papagaio é,
É como
muitas pessoas,
Um
bicho que faz banzé
E põe no mesmo pé
Coisas más
e coisas boas.
|
[Levava eu um jarrinho]
Levava eu um jarrinho
Para ir buscar vinho;
Levava um tostão
P'ra comprar um pão;
Levava uma fita
Para ir bonita.
Correu atrás
De mim um rapaz.
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
Se eu não levasse um
jarrinho
Para ir buscar vinho,
Nem levasse um tostão
P'ra comprar um pão,
Nem levasse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia. ,
de Fernando Pessoa
|
Os Meninos Educados, de
Luísa Ducla Soares
0s meninos educados
de manhã dizem bom-dia
bom-dia, senhor José,
bom-dia, dona Maria.
Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, sol amarelo,
bom-dia, ribeira fria,
bom-dia, flores do
jardim,
bom-dia, cães da cidade,
bom-dia, ó bicicleta,
bom-dia de liberdade.
Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, lixo da praia
e cascas de melancia,
bom-dia, guerra que
matas
bom-dia, mesa sem pão,
bom-dia, tecto de céu,
bom-dia, voz sem canção.
Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia
e partem como andorinhas
em busca de um novo dia.
A Lapiseira
Eu posso viver sem sol,
sem ninguém à minha
beira.
Mas só não posso viver
sem a minha lapiseira.
Rodo com ela nos dedos,
é varinha de condão,
breve fósforo que acende
lumes de imaginação.
Pássaro de bico negro,
de negro, negro carvão,
que leva com suas asas
a minha voz e canção.
Chamo o sol e os amigos,
assim,à minha maneira,
viajando no papel
só com uma lapiseira.
Luísa Ducla Soares
Presente
A girafa deu
ao seu
marido
no dia
de Natal
um lenço
colorido
de seda natural.
Que alegria!
- disse o marido –
ponha a pata
nesta pata,
com um pescoço
tão comprido
você não podia
ter-me comprado
uma gravata.
Sidónio Muralha
É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata.
Na canastra, a caravela;
no coração, a fragata.
Em vez de corvos, no
xaile
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao
baile,
baila no baile co'o mar.
É de conchas o vestido;
tem algas na cabeleira;
e nas veias o latido
do motor de uma
traineira.
Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio, Maria.
Seu apelido, Lisboa.
MOURÃO-FERREIRA, David
Boas noites, de João de
Deus
Estava uma lavadeira
A lavar n'uma ribeira,
Quando chega um caçador.
– Boas tardes,
lavadeira!
– Boas tardes, caçador!
– Sumiu-se-me a
perdigueira
Ali naquela ladeira,
Não me fazeis o favor
De me dizer se a
brejeira
Passou aqui a ribeira?
– Olhe que d'essa
maneira
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.
– Que me importa,
lavadeira!
Aqui na minha
algibeira
Trago dobrado
valor.
Assim eu fora
senhor
De levar a vida
inteira
Só a ver o meu amor
Lavar roupa na
ribeira...
– Talvez que fosse
melhor,
Ver... coser a
costureira!
Vir, de ladeira em
ladeira,
Apanhar esta
canseira
E tudo só por amor
De ver uma
lavadeira
Lavar roupa na
ribeira...
É escusado, senhor!
– Boas noites...
lavadeira!
– Boas noites,
caçador!..
|
A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.
Embevecida,
A mãe ovelha deixa de
remoer
E a vida
Para também, a ver. "Instante", de Miguel Torga
O Cavalinho Branco
À tarde, o cavalinho
branco
está muito cansado:
mas há um pedacinho do
campo
onde é sempre feriado.
O cavalo sacode a crina
loura e comprida
e nas verdes ervas atira
sua branca vida.
Seu relincho estremece
as raízes
e ele ensina aos ventos
a alegria de sentir
livres
seus movimentos.
Trabalhou todo o dia,
tanto!
desde a madrugada!
Descansa entre as
flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
Cecília Meireles
Girafa
A
girafa é um bicho
muito
engraçado
que dá
a impressão
de que
foi feito errado...
O
pescoço é tão comprido
(e não
sou só eu que acho!),
que
deve ser bem difícil
a
girafa olhar pra baixo...
Ela
anda de um jeito
desengonçado,
parece
um navio
num mar
agitado.
Mas uma
coisa é certa
e nisso
eu acredito:
a
girafa é um animal
simpático
e bonito...
E agora
me diga
- não
pode hesitar:
-Como é
que a girafa
faz pra
namorar? Carlos Pimentel
Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?
Vou àquela serra
buscar uma ovelha.
Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?
Não tenho ninguém
que me queira bem.
Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
"O Pastor", de
Eugénio de Andrade
Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de
abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço
forte:
estou no meu posto a
lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.
FONSECA, Manuel da –
"O vagabundo do mar".
O Gato
Com um lindo salto
Lesto e seguro O gato passa Do chão ao muro Logo mudando De opinião Passa de novo Do muro ao chão E pega corre Bem de mansinho Atrás de um pobre De um passarinho Súbito, para Como assombrado Depois dispara Pula de lado E quando tudo Se lhe fatiga Toma o seu banho Passando a língua Pela barriga. |
Vitorino Nemésio
A concha
A minha casa é concha.
Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a
sonho e lixos,
O horto e os muros só
areia e ausência.
Minha casa sou eu e os
meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma
varanda, vence-a
O sal que os santos
esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e
escadarias
Frágeis, cobertas de
hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento,
as salas frias.
A minha casa... Mas é
outra a história:
Sou eu ao vento e à
chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de
memória.
Miguel Torga
Segredo
Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um
passarinho
Novo.
Mas escusam de me
atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar…
António
Ramos Rosa
Não
posso adiar o amor para outro século
não
posso
ainda
que o grito sufoque na garganta
ainda
que o ódio estale e crepite e arda
sob as
montanhas cinzentas
e
montanhas cinzentas
Não
posso adiar este braço
que é
uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não
posso adiar
ainda
que a noite pese séculos sobre as costas
e a
aurora indecisa demore
não
posso adiar para outro século a minha vida
nem o
meu amor
nem o
meu grito de libertação
Não
posso adiar o coração
Eugénio
de Andrade , As palavras
São
como um cristal,
as
palavras.
Algumas, um punhal,
um
incêndio.
Outras,
orvalho
apenas.
Secretas
vêm, cheias de memória.
Inseguras
navegam:
barcos
ou beijos,
as
águas estremecem.
Desamparadas,
inocentes,
leves.
Tecidas
são de luz
e são a
noite.
E mesmo pálidas
verdes
paraísos lembram ainda.
Quem as
escuta? Quem
as
recolhe, assim,
cruéis,
desfeitas,
nas
suas conchas puras? In Coração do Dia
David Mourão-Ferreira, E
por vezes
E por vezes as noites
duram meses
E por vezes os meses oceanos
E por vezes os braços que apertamos
nunca mais são os mesmos E por vezes
encontramos de nós em
poucos meses
o que a noite nos fez em
muitos anos
E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos
que por vezes
ao tomarmos o gosto aos
oceanos
só o sarro das noites
não dos meses
lá no fundo dos copos
encontramos
E por vezes sorrimos ou
choramos
E por vezes por vezes ah
por vezes
num segundo se evolam tantos anos , In Obra Poética
Leva-me os olhos, gaivota,
e deixa-os cair lá longe
naquela ilha sem rota...
Lá...
onde os cravos e os
jasmins
nunca se repetem nos
jardins...
Lá...
onde nunca a mesma
aranha tece a mesma teia
na mesma escuridão das
mesmas casas...
Lá...
onde toda a noite canta
uma sereia
e a lua tem asas...
Lá...
José Gomes Ferreira
Fernando Pessoa
Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha
alma.
E é tão lento o teu
soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira
pancada
Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas
perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um
sonho,
Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu
aberto,
Sinto mais longe o
passado,
Sinto a saudade mais
perto.
Alexandre O’Neill
– Deixei descair os
olhos
Do céu alto e das
estrelas...
Vi entre a névoa da
terra,
Outra luz mais bela que
elas.
E as minhas asas
brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao
céu.
Cegou-me essa luz
funesta
De enfeitiçados
amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de
dores!
– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus
amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.
E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.
, In Flores sem Fruto
Em todas as ruas te
encontro
Em todas as ruas te
encontro
em todas as ruas te
perco
conheço tão bem o teu
corpo
sonhei tanto a tua
figura
que é de olhos fechados
que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o
ar
que te atravessou a
cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se
transfigura
e toca o seu próprio
elemento
num corpo que já não é
seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me
procura
Em todas as ruas te
encontro
em todas as ruas te
perco
Autor : Mário Cesariny
Bichinho-de-conta
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta contou
que um dia
se enrolou
e parecia
um berlinde pequenino
de tal maneira
que um menino
de brincadeira
com ele jogou…
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta
contou.
Sidónio Muralha
António Victor Ramos
Rosa
17 de Outubro de 1924 -
23 de Setembro de 2013
Escuto na palavra a
festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio.
As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão
próximas de si mesmas.
Concentram-se,
dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É
um pomar de espuma.
Uma criança brinca nas
dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga.
A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa:
a simples respiração.
Relações, variações,
nada mais.
Nada se cria.
Vamos e vimos.
Algo inunda, incendeia,
recomeça.
Nada é inacessível no
silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada
transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma
fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore
em mim respira.
Vivo na delícia nua da
inocência aberta.
Tal como antigamente
Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair
Autor: Antonio
Ramos Rosa
Já
rebentei de correr
Sete
cavalos a fio.
O
primeiro era cinzento
Com
sonhos de água sem fundo
E cor
do norte o segundo
Com ferraduras
de prata.
O
terceiro era um mistério
E o quarto
cor de agonia.
O
quinto, de olhos em brasa,
Era só
prata e espanto.
O sexto
não se sabia
Se era
cavalo, se vento.
Corria
o sétimo tanto
Que nem
a cor se lhe via.
Quanto
mais ando mais meço
As
distâncias que há em mim
Cada
desejo é um fim
E cada
fim um começo.
Autor: Armindo
Rodrigues
Papagaio
, Sidónio Muralha
O
papagaio é,
É, como
muitas pessoas,
Um
bicho que faz banzé
E que
põe no mesmo pé
Coisas
más e coisas boas….
E como
tudo o que diz,
O diz
gritando, é pedante,
E é um
bichinho feliz
Talvez
por ser ignorante.
Diz
não, mas repete sim.
Diz
sim, mas repete não.
Só
pensa no amendoim
E é um
grande comilão.
E como
põe energia
Quando
diz tudo e diz nada
Faz parte da academia
Da
ilustre bicharada
E nos
discursos que faz,
Faz uma
tal confusão,
Que
nenhum bicho é capaz
De saber quem tem razão.
Porque
o papagaio é,
É como
muitas pessoas,
Um
bicho que faz banzé
E põe no mesmo pé
Coisas
más e coisas boas.
A
Lapiseira
Eu
posso viver sem sol,
sem
ninguém à minha beira.
Mas só
não posso viver
sem a
minha lapiseira.
Rodo
com ela nos dedos,
é
varinha de condão,
breve
fósforo que acende
lumes
de imaginação.
Pássaro
de bico negro,
de
negro, negro carvão,
que
leva com suas asas
a minha
voz e canção.
Chamo o
sol e os amigos,
assim,à
minha maneira,
viajando
no papel
só com
uma lapiseira.
Luísa
Ducla Soares
Presente
A
girafa deu
ao seu
marido
no dia
de
Natal
um
lenço
colorido
de seda
natural.
Que
alegria!
- disse
o marido –
ponha a
pata
nesta
pata,
com um
pescoço
tão
comprido
você
não podia
ter-me
comprado
uma
gravata.
Sidónio
Muralha
É
varina, usa chinela,
tem
movimentos de gata.
Na
canastra, a caravela;
no
coração, a fragata.
Em vez
de corvos, no xaile
gaivotas
vêm pousar.
Quando
o vento a leva ao baile,
baila
no baile co'o mar.
É de
conchas o vestido;
tem
algas na cabeleira;
e nas
veias o latido
do
motor de uma traineira.
Vende
sonho e maresia,
tempestades
apregoa.
Seu
nome próprio, Maria.
Seu
apelido, Lisboa.
MOURÃO-FERREIRA,
David
|
As meninas, Cecília
Meireles
Arabela
abria a janela.
Carolina
erguia a cortina.
E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!”
Arabela
foi sempre a mais bela.
Carolina,
a mais sábia menina.
E Maria
apenas sorria:
“Bom dia!”
Pensaremos em cada
menina
que vivia naquela
janela;
uma que se chamava Arabela,
uma que se chamou
Carolina.
Mas a profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,
que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!”
Leilão de jardim
Quem me compra um jardim
com flores?
Borboletas de muitas
cores,
lavadeiras e
passarinhos,
ovos verdes e azuis nos
ninhos?
Quem me compra este
caracol?
Quem me compra um raio
de sol?
Um lagarto entre o muro
e a hera,
uma estátua da
Primavera?
Quem me compra este
formigueiro?
E este sapo, que é
jardineiro?
E a cigarra e a sua
canção?
E o grilinho dentro do
chão?
(Este é o meu leilão.) Cecília
Meireles
O Relógio
Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac… Vinicius de Moraes
Um sofrimento parecia
revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se
perca
o que facilmente se
perde
o silêncio as esplanadas
da tarde
a confidência dócil de
certos arredores
os meses seguidos sem
nenhum cálculo
por vezes é tão
criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura,
uma alegria
Autor: José Tolentino
Mendonça
Alexandre O’Neill
Amigo
Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra “amigo”.
“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta,
que se oferece,
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!
“Amigo” (recordam-se,
vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de
inimigo!
“Amigo” é o erro
corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada,
praticada.
“Amigo” é a solidão
derrotada!
“Amigo” é uma grande
tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo
fértil,
“Amigo” vai ser, é já
uma grande festa!
David Mourão-Ferreira
Barco negro
De manhã, que medo
que me achasses feia.
Acordei, tremendo,
deitada n’areia.
Mas logo os teus olhos
disseram que não
e o sol penetrou
no meu coração.
Vi depois, numa rocha,
uma cruz
e o teu barco negro
dançava na luz.
Vi teu braço acenando,
entre as velas já
soltas.
Dizem as velhas da praia
que não voltas.
São loucas! São loucas!
Eu sei meu amor
que nem chegaste a
partir
pois tudo em meu redor
me diz que estás sempre
comigo.
No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
nos barcos vazios,
dentro do meu peito
– ‘stás sempre comigo!
A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.
Embevecida,
A mãe ovelha deixa de
remoer
E a vida
Para também, a ver. "Instante", de Miguel Torga
O Cavalinho Branco
À tarde, o cavalinho
branco
está muito cansado:
mas há um pedacinho do
campo
onde é sempre feriado.
O cavalo sacode a crina
loura e comprida
e nas verdes ervas atira
sua branca vida.
Seu relincho estremece
as raízes
e ele ensina aos ventos
a alegria de sentir
livres
seus movimentos.
Trabalhou todo o dia,
tanto!
desde a madrugada!
Descansa entre as flores,
cavalinho branco,
de crina dourada!
Cecília Meireles
Girafa
A girafa é um bicho
muito engraçado
que dá a impressão
de que foi feito
errado...
O pescoço é tão comprido
(e não sou só eu que
acho!),
que deve ser bem difícil
a girafa olhar pra baixo...
Ela anda de um jeito
desengonçado,
parece um navio
num mar agitado.
Mas uma coisa é certa
e nisso eu acredito:
a girafa é um animal
simpático e bonito...
E agora me diga
- não pode hesitar:
-Como é que a girafa
faz pra namorar?
Carlos Pimentel
Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?
Vou àquela serra
buscar uma ovelha.
Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?
Não tenho ninguém
que me queira bem.
Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
"O Pastor", de
Eugénio de Andrade
Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de
abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço
forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo
acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.
FONSECA, Manuel da –
"O vagabundo do mar".
[Levava eu um jarrinho]
Levava eu um jarrinho
Para ir buscar vinho;
Levava um tostão
P'ra comprar um pão;
Levava uma fita
Para ir bonita.
Correu atrás
De mim um rapaz.
Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão,
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!
Se eu não levasse um
jarrinho
Para ir buscar vinho,
Nem levasse um tostão
P'ra comprar um pão,
Nem levasse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia. ,
de Fernando Pessoa
Os Meninos Educados, de
Luísa Ducla Soares
0s
meninos educados
de
manhã dizem bom-dia
bom-dia,
senhor José,
bom-dia,
dona Maria.
Os
meninos educados
de
manhã dizem bom-dia,
bom-dia,
sol amarelo,
bom-dia,
ribeira fria,
bom-dia,
flores do jardim,
bom-dia,
cães da cidade,
bom-dia,
ó bicicleta,
bom-dia
de liberdade.
Os
meninos educados
de
manhã dizem bom-dia,
bom-dia,
lixo da praia
e
cascas de melancia,
bom-dia,
guerra que matas
bom-dia,
mesa sem pão,
bom-dia,
tecto de céu,
bom-dia,
voz sem canção.
Os meninos
educados
de
manhã dizem bom-dia
e
partem como andorinhas
em
busca de um novo dia.
Boas
noites, de João de Deus
Estava uma lavadeira
A lavar
n'uma ribeira,
Quando
chega um caçador.
– Boas
tardes, lavadeira!
– Boas
tardes, caçador!
–
Sumiu-se-me a perdigueira
Ali
naquela ladeira,
Não me
fazeis o favor
De me
dizer se a brejeira
Passou
aqui a ribeira?
– Olhe
que d'essa maneira
Até um
dia, senhor,
Perdereis
a caçadeira,
Que
ainda é perda maior.
– Que
me importa, lavadeira!
Aqui na
minha algibeira
Trago
dobrado valor.
Assim
eu fora senhor
De
levar a vida inteira
Só a
ver o meu amor
Lavar
roupa na ribeira...
–
Talvez que fosse melhor,
Ver...
coser a costureira!
Vir, de
ladeira em ladeira,
Apanhar
esta canseira
E tudo
só por amor
De ver
uma lavadeira
Lavar
roupa na ribeira...
É
escusado, senhor!
– Boas
noites... lavadeira!
– Boas
noites, caçador!..
|
Sem comentários:
Enviar um comentário