quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Aqui ficam alguns poemas...



Vitorino Nemésio

A concha

A minha casa é concha. Como os bichos
 Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
 O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.

Miguel Torga
Segredo

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
 Nem o tiro, nem o ensino.
 Quero ser um bom menino
 E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
 A voar…

In Diário VIII

António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes
 amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração



Eugénio de Andrade , As palavras

São como um cristal,
as palavras.
 Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
 E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras? 
 In Coração do Dia

David Mourão-Ferreira, E por vezes

E por vezes as noites duram meses
 E por vezes os meses oceanos
 E por vezes os braços que apertamos
 nunca mais são os mesmos  E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
 E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes





Alexandre O’Neill

Amigo

Mal nos conhecemos
 Inaugurámos a palavra “amigo”.

“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
 Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
 Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,
 Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil, 
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!
…………………………………………..

Leva-me os olhos, gaivota,
e deixa-os cair lá longe naquela ilha sem rota...
Lá...
onde os cravos e os jasmins
nunca se repetem nos jardins...
Lá...
onde nunca a mesma aranha tece a mesma teia
na mesma escuridão das mesmas casas...
Lá...
onde toda a noite canta uma sereia
e a lua tem asas...
Lá...
José Gomes Ferreira


Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria

Autor: José Tolentino Mendonça


ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
 num segundo se evolam tantos anos ,  In Obra Poética








David Mourão-Ferreira

Barco negro

De manhã, que medo
que me achasses feia.
 Acordei, tremendo,
deitada n’areia.

Mas logo os teus olhos
 disseram que não
e o sol penetrou
 no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz
 e o teu barco negro
 dançava na luz.
Vi teu braço acenando,
entre as velas já soltas.
 Dizem as velhas da praia
que não voltas.
São loucas! São loucas!

Eu sei meu amor
que nem chegaste a partir
pois tudo em meu redor
 me diz que estás sempre
comigo.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
 nos barcos vazios,
dentro do meu peito
– ‘stás sempre comigo!


Fernando Pessoa

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
 Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
 Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
 Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto, 
Sinto mais longe o passado, 
Sinto a saudade mais perto.



https://gyazo.com/e41469abdf977d9484ce515d30bb4358.pnghttps://gyazo.com/b09fcb94a73ddc131fe4455306d15481.png
Alexandre O’Neill

Almeida Garrett
https://gyazo.com/4b58edd38beca39611e48a258f78c8be.png
– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas... 
Vi entre a névoa da terra, 
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
 Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu. ,
In Flores sem Fruto
Neste outono, as pedras agasalham-se no cobertor
do musgo; e o barro bebe a água; e o vento viaja rente
aos muros. Mas eu, sem ti, deito-me gelada sobre a cama
e digo palavras que queimam a boca por dentro ― amor,

saudade, o teu nome e os nomes das coisas que tocaste
(e sobre as quais deixo crescer o pó, para que os dias
não se decalquem sempre de outros dias). Fecho os olhos

depois sobre a almofada e vejo o rosto branco da casa
desenhar-se à medida da tua ausência: as janelas abrem-se
para a solidão dos becos e há um farrapo de luz sobre a porta
a que ninguém virá bater. pergunto-me onde anda a tua
sombra quando aqui não estás. E tenho medo. São estes

os solavancos de uma ida pequena ― bordar uma toalha
para logo a manchar de vinho, sentir a ferida na distância
do punhal, viver à espera de uma dor que há-de chegar.

Autor :Maria do Rosário Pedreira


Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto     tão perto     tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Autor : Mário Cesariny






Bichinho-de-conta
Bichinho-de-conta
 conta…
 E o bichinho-de-conta contou
que um dia
se enrolou
e parecia
 um berlinde pequenino
de tal maneira
que um menino
de brincadeira
com ele jogou…
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta
contou.
Sidónio Muralha

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade
nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor
nem o interior da erva.

Como é possível perder-te
sem nunca te ter achado
minha raiva de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda.

Autor:Maria Teresa Horta


António Victor Ramos Rosa
17 de Outubro de 1924 - 23 de Setembro de 2013

Escuto na palavra a festa do silêncio. 

Tudo está no seu sítio.
As aparências apagaram-se. 
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas. 
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas. 
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma. 

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia, 
o ar prolonga.
A brancura é o caminho. 
Surpresa e não surpresa: a simples respiração. 
Relações, variações, nada mais.
Nada se cria. 
Vamos e vimos.
Algo inunda, incendeia, recomeça. 

Nada é inacessível no silêncio ou no poema. 
É aqui a abóbada transparente, o vento principia. 
No centro do dia há uma fonte de água clara. 
Se digo árvore a árvore em mim respira. 
Vivo na delícia nua da inocência aberta. 











Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair

Autor:Antonio Ramos Rosa

Já rebentei de correr
Sete cavalos a fio.
O primeiro era cinzento
Com sonhos de água sem fundo
E cor do norte o segundo
Com ferraduras de prata.
O terceiro era um mistério
E o quarto cor de agonia.
O quinto, de olhos em brasa,
Era só prata e espanto.
O sexto não se sabia
Se era cavalo, se vento.
Corria o sétimo tanto
Que nem a cor se lhe via.
Quanto mais ando mais meço
As distâncias que há em mim
Cada desejo é um fim
E cada fim um começo.

Autor:Armindo Rodrigues
Papagaio , Sidónio Muralha

O papagaio é,
É, como muitas pessoas,
Um bicho que faz banzé
E que põe no mesmo pé
Coisas más e coisas boas….
E como tudo o que diz,
O diz gritando, é pedante,
E é um bichinho feliz
Talvez por ser ignorante.

Diz não, mas repete sim.
Diz sim, mas repete não.
Só pensa no amendoim
E é um grande comilão.

E como põe energia
Quando diz tudo e diz nada
 Faz parte da academia
Da ilustre bicharada

E nos discursos que faz,
Faz uma tal confusão,
Que nenhum bicho é capaz
 De saber quem tem razão.

Porque o papagaio é,
É como muitas pessoas,
Um bicho que faz banzé
 E põe no mesmo pé
Coisas más e coisas boas.
[Levava eu um jarrinho]

Levava eu um jarrinho
Para ir buscar vinho;
Levava um tostão
P'ra comprar um pão;
 Levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás 
De mim um rapaz.
 Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão, 
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho
 Para ir buscar vinho,
Nem levasse um tostão
P'ra comprar um pão,
Nem levasse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia. ,
de Fernando Pessoa

             
Os Meninos Educados, de Luísa Ducla Soares

0s meninos educados
de manhã dizem bom-dia
bom-dia, senhor José,
bom-dia, dona Maria.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, sol amarelo,
bom-dia, ribeira fria,
bom-dia, flores do jardim,
bom-dia, cães da cidade,
bom-dia, ó bicicleta,
bom-dia de liberdade.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, lixo da praia
e cascas de melancia,
bom-dia, guerra que matas
bom-dia, mesa sem pão,
bom-dia, tecto de céu,
bom-dia, voz sem canção.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia
e partem como andorinhas
em busca de um novo dia.

A Lapiseira

Eu posso viver sem sol,
sem ninguém à minha beira.
Mas só não posso viver
sem a minha lapiseira.

Rodo com ela nos dedos,
é varinha de condão,
breve fósforo que acende
lumes de imaginação.

Pássaro de bico negro,
de negro, negro carvão,
que leva com suas asas
a minha voz e canção.

Chamo o sol e os amigos,
assim,à minha maneira,
viajando no papel
só com uma lapiseira.
Luísa Ducla Soares
           










Presente

A girafa deu
ao seu
marido
no dia
de Natal
um lenço
colorido
de seda natural.

Que alegria!
- disse o marido –
ponha a pata
nesta pata,
com um pescoço
tão comprido
você não podia
ter-me comprado
uma gravata.

Sidónio Muralha
           
           

É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata.
Na canastra, a caravela;
no coração, a fragata.

Em vez de corvos, no xaile
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile co'o mar.

É de conchas o vestido;
tem algas na cabeleira;
e nas veias o latido
do motor de uma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio, Maria.
Seu apelido, Lisboa.

MOURÃO-FERREIRA, David
           














Boas noites, de João de Deus

 Estava uma lavadeira
A lavar n'uma ribeira,
Quando chega um caçador.
– Boas tardes, lavadeira!
– Boas tardes, caçador!
– Sumiu-se-me a perdigueira
Ali naquela ladeira,
Não me fazeis o favor
De me dizer se a brejeira
Passou aqui a ribeira?
– Olhe que d'essa maneira
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.
– Que me importa, lavadeira!
Aqui na minha algibeira            
Trago dobrado valor.            
Assim eu fora senhor            
De levar a vida inteira            
Só a ver o meu amor            
Lavar roupa na ribeira...          
– Talvez que fosse melhor,            
Ver... coser a costureira!            
Vir, de ladeira em ladeira,            
Apanhar esta canseira            
E tudo só por amor            
De ver uma lavadeira            
Lavar roupa na ribeira...            
É escusado, senhor!            
– Boas noites... lavadeira!        
– Boas noites, caçador!..
A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Para também, a ver.   "Instante", de Miguel Torga

O Cavalinho Branco

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:

mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!

Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
Cecília Meireles

Girafa

A girafa é um bicho
muito engraçado
que dá a impressão
de que foi feito errado...

O pescoço é tão comprido
(e não sou só eu que acho!),
que deve ser bem difícil
a girafa olhar pra baixo...

Ela anda de um jeito
desengonçado,
parece um navio
num mar agitado.

Mas uma coisa é certa
e nisso eu acredito:
a girafa é um animal
simpático e bonito...

E agora me diga
- não pode hesitar:
-Como é que a girafa
faz pra namorar?     Carlos Pimentel


Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?

Vou àquela serra
buscar uma ovelha.

Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?

Não tenho ninguém
que me queira bem.

Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
"O Pastor", de Eugénio de Andrade


Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

FONSECA, Manuel da – "O vagabundo do mar".














O Gato
Com um lindo salto
Lesto e seguro
O gato passa
Do chão ao muro
Logo mudando
De opinião
Passa de novo
Do muro ao chão
E pega corre
Bem de mansinho
Atrás de um pobre
De um passarinho
Súbito, para
Como assombrado
Depois dispara
Pula de lado
E quando tudo
Se lhe fatiga
Toma o seu banho
Passando a língua
Pela barriga.


Vitorino Nemésio

A concha

A minha casa é concha. Como os bichos
 Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.

Minha casa sou eu e os meus caprichos.
 O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.

E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.

A minha casa... Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.  








Miguel Torga
Segredo

Sei um ninho.
E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.

Mas escusam de me atentar:
 Nem o tiro, nem o ensino.
 Quero ser um bom menino
 E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
 A voar…


António Ramos Rosa

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes
 amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

           
Eugénio de Andrade , As palavras

São como um cristal,
as palavras.
 Algumas, um punhal,
um incêndio.
Outras,
orvalho apenas.

Secretas vêm, cheias de memória.
Inseguras navegam:
barcos ou beijos,
as águas estremecem.

Desamparadas, inocentes,
leves.
Tecidas são de luz
e são a noite.
 E mesmo pálidas
verdes paraísos lembram ainda.

Quem as escuta? Quem
as recolhe, assim,
cruéis, desfeitas,
nas suas conchas puras?   In Coração do Dia


David Mourão-Ferreira, E por vezes

E por vezes as noites duram meses
 E por vezes os meses oceanos
 E por vezes os braços que apertamos
 nunca mais são os mesmos  E por vezes

encontramos de nós em poucos meses
o que a noite nos fez em muitos anos
 E por vezes fingimos que lembramos
E por vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos
só o sarro das noites não dos meses
lá no fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah por vezes
 num segundo se evolam tantos anos ,  In Obra Poética



Leva-me os olhos, gaivota,
e deixa-os cair lá longe naquela ilha sem rota...
Lá...
onde os cravos e os jasmins
nunca se repetem nos jardins...
Lá...
onde nunca a mesma aranha tece a mesma teia
na mesma escuridão das mesmas casas...
Lá...
onde toda a noite canta uma sereia
e a lua tem asas...
Lá...
José Gomes Ferreira


Fernando Pessoa

Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
 Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
 Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
 Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto, 
Sinto mais longe o passado, 
Sinto a saudade mais perto.

Alexandre O’Neill
             
– Deixei descair os olhos
Do céu alto e das estrelas... 
Vi entre a névoa da terra, 
Outra luz mais bela que elas.

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu,
Para a terra me pesavam,
Já não se erguiam ao céu.

Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...
Fatal amor, negra hora
Foi aquela hora de dores!
– Tudo perdi nessa hora
Que provei nos seus amores
O doce fel do deleite,
O acre prazer das dores.

E as minhas asas brancas,
 Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu. , In Flores sem Fruto








Em todas as ruas te encontro

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto     tão perto     tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco

Autor : Mário Cesariny







Bichinho-de-conta
Bichinho-de-conta
 conta…
 E o bichinho-de-conta contou
que um dia
se enrolou
e parecia
 um berlinde pequenino
de tal maneira
que um menino
de brincadeira
com ele jogou…
Bichinho-de-conta
conta…
E o bichinho-de-conta
contou.
Sidónio Muralha

António Victor Ramos Rosa
17 de Outubro de 1924 - 23 de Setembro de 2013

Escuto na palavra a festa do silêncio.

Tudo está no seu sítio.
As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se as ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga.
A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais.
Nada se cria.
Vamos e vimos.
Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.













Tal como antigamente

Tal como antigamente
tal como agora
essa estrela
esse muro
esse lento
esse morto sorrir
nenhum acaso
nenhuma porta
impossível sair

Autor: Antonio Ramos Rosa

Já rebentei de correr
Sete cavalos a fio.
O primeiro era cinzento
Com sonhos de água sem fundo
E cor do norte o segundo
Com ferraduras de prata.
O terceiro era um mistério
E o quarto cor de agonia.
O quinto, de olhos em brasa,
Era só prata e espanto.
O sexto não se sabia
Se era cavalo, se vento.
Corria o sétimo tanto
Que nem a cor se lhe via.
Quanto mais ando mais meço
As distâncias que há em mim
Cada desejo é um fim
E cada fim um começo.

Autor: Armindo Rodrigues

Papagaio , Sidónio Muralha

O papagaio é,
É, como muitas pessoas,
Um bicho que faz banzé
E que põe no mesmo pé
Coisas más e coisas boas….
E como tudo o que diz,
O diz gritando, é pedante,
E é um bichinho feliz
Talvez por ser ignorante.

Diz não, mas repete sim.
Diz sim, mas repete não.
Só pensa no amendoim
E é um grande comilão.

E como põe energia
Quando diz tudo e diz nada
 Faz parte da academia
Da ilustre bicharada

E nos discursos que faz,
Faz uma tal confusão,
Que nenhum bicho é capaz
 De saber quem tem razão.


Porque o papagaio é,
É como muitas pessoas,
Um bicho que faz banzé
 E põe no mesmo pé
Coisas más e coisas boas.      

A Lapiseira

Eu posso viver sem sol,
sem ninguém à minha beira.
Mas só não posso viver
sem a minha lapiseira.

Rodo com ela nos dedos,
é varinha de condão,
breve fósforo que acende
lumes de imaginação.

Pássaro de bico negro,
de negro, negro carvão,
que leva com suas asas
a minha voz e canção.

Chamo o sol e os amigos,
assim,à minha maneira,
viajando no papel
só com uma lapiseira.
Luísa Ducla Soares

Presente

A girafa deu
ao seu
marido
no dia
de Natal
um lenço
colorido
de seda natural.

Que alegria!
- disse o marido –
ponha a pata
nesta pata,
com um pescoço
tão comprido
você não podia
ter-me comprado
uma gravata.

Sidónio Muralha
           
É varina, usa chinela,
tem movimentos de gata.
Na canastra, a caravela;
no coração, a fragata.

Em vez de corvos, no xaile
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,
baila no baile co'o mar.

É de conchas o vestido;
tem algas na cabeleira;
e nas veias o latido
do motor de uma traineira.

Vende sonho e maresia,
tempestades apregoa.
Seu nome próprio, Maria.
Seu apelido, Lisboa.

MOURÃO-FERREIRA, David
As meninas, Cecília Meireles
Arabela
abria a janela.

Carolina
erguia a cortina.

E Maria
olhava e sorria:
“Bom dia!”

Arabela
foi sempre a mais bela.

Carolina,
a mais sábia menina.

E Maria
apenas sorria:
“Bom dia!”

Pensaremos em cada menina
que vivia naquela janela;

uma que se chamava Arabela,
uma que se chamou Carolina.

Mas a profunda saudade
é Maria, Maria, Maria,

que dizia com voz de amizade:
“Bom dia!”

Leilão de jardim
Quem me compra um jardim com flores?
Borboletas de muitas cores,
lavadeiras e passarinhos,
ovos verdes e azuis nos ninhos?
Quem me compra este caracol?
Quem me compra um raio de sol?
Um lagarto entre o muro e a hera,
uma estátua da Primavera?
Quem me compra este formigueiro?
E este sapo, que é jardineiro?
E a cigarra e a sua canção?
E o grilinho dentro do chão?
(Este é o meu leilão.) Cecília Meireles

O Relógio
Passa, tempo, tic-tac
Tic-tac, passa, hora
Chega logo, tic-tac
Tic-tac, e vai-te embora
Passa, tempo
Bem depressa
Não atrasa
Não demora
Que já estou
Muito cansado
Já perdi
Toda a alegria
De fazer
Meu tic-tac
Dia e noite
Noite e dia
Tic-tac
Tic-tac
Tic-tac…  Vinicius de Moraes





Um sofrimento parecia revelar
a vida ainda mais
a estranha dor de que se perca
o que facilmente se perde
o silêncio as esplanadas da tarde
a confidência dócil de certos arredores
os meses seguidos sem nenhum cálculo

por vezes é tão criminoso
não percebermos
uma palavra, uma jura, uma alegria

Autor: José Tolentino Mendonça
           









Alexandre O’Neill

Amigo

Mal nos conhecemos
 Inaugurámos a palavra “amigo”.

“Amigo” é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece,
 Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

“Amigo” (recordam-se, vocês aí,
 Escrupulosos detritos?)
“Amigo” é o contrário de inimigo!

“Amigo” é o erro corrigido,
 Não o erro perseguido, explorado, 
É a verdade partilhada, praticada.

“Amigo” é a solidão derrotada!

“Amigo” é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil, 
“Amigo” vai ser, é já uma grande festa!



































David Mourão-Ferreira

Barco negro

De manhã, que medo
que me achasses feia.
 Acordei, tremendo,
deitada n’areia.

Mas logo os teus olhos
 disseram que não
e o sol penetrou
 no meu coração.

Vi depois, numa rocha, uma cruz
 e o teu barco negro
 dançava na luz.
Vi teu braço acenando,
entre as velas já soltas.
 Dizem as velhas da praia
que não voltas.
São loucas! São loucas!

Eu sei meu amor
que nem chegaste a partir
pois tudo em meu redor
 me diz que estás sempre
comigo.

No vento que lança
areia nos vidros,
na água que canta,
no fogo mortiço,
no calor do leito,
 nos barcos vazios,
dentro do meu peito
– ‘stás sempre comigo!



            A cena é muda e breve:
Num lameiro,
Um cordeiro
A pastar ao de leve.

Embevecida,
A mãe ovelha deixa de remoer
E a vida
Para também, a ver.   "Instante", de Miguel Torga

O Cavalinho Branco

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:

mas há um pedacinho do campo
onde é sempre feriado.

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
desde a madrugada!

Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada!
Cecília Meireles

Girafa

A girafa é um bicho
muito engraçado
que dá a impressão
de que foi feito errado...

O pescoço é tão comprido
(e não sou só eu que acho!),
que deve ser bem difícil
a girafa olhar pra baixo...

Ela anda de um jeito
desengonçado,
parece um navio
num mar agitado.

Mas uma coisa é certa
e nisso eu acredito:
a girafa é um animal
simpático e bonito...

E agora me diga
- não pode hesitar:
-Como é que a girafa
faz pra namorar?

Carlos Pimentel


Pastor, pastorinho,
onde vais sozinho?

Vou àquela serra
buscar uma ovelha.

Porque vais sozinho,
pastor, pastorinho?

Não tenho ninguém
que me queira bem.

Não tens um amigo?
Deixa-me ir contigo.
"O Pastor", de Eugénio de Andrade

Sou barco de vela e remo
sou vagabundo do mar.
Não tenho escala marcada
nem hora para chegar:
é tudo conforme o vento,
tudo conforme a maré...
Muitas vezes acontece
largar o rumo tomado
da praia para onde ia...
Foi o vento que virou?
foi o mar que enraiveceu
e não há porto de abrigo?
ou foi a minha vontade
de vagabundo do mar?
Sei lá.
Fosse o que fosse
não tenho rota marcada
ando ao sabor da maré.
É por isso, meus amigos,
que a tempestade da Vida
me apanhou no alto mar.
E agora
queira ou não queira,
cara alegre e braço forte:
estou no meu posto a lutar!
Se for ao fundo acabou-se.
Estas coisas acontecem
aos vagabundos do mar.

FONSECA, Manuel da – "O vagabundo do mar".

[Levava eu um jarrinho]

Levava eu um jarrinho
Para ir buscar vinho;
Levava um tostão
P'ra comprar um pão;
 Levava uma fita
Para ir bonita.

Correu atrás 
De mim um rapaz.
 Foi o jarro p'ra o chão,
Perdi o tostão, 
Rasgou-se-me a fita...
Vejam que desdita!

Se eu não levasse um jarrinho
 Para ir buscar vinho,
Nem levasse um tostão
P'ra comprar um pão,
Nem levasse uma fita
Para ir bonita,
Nem corresse atrás
De mim um rapaz
Para ver o que eu fazia,
Nada disto acontecia. , de Fernando Pessoa



Os Meninos Educados, de Luísa Ducla Soares

0s meninos educados
de manhã dizem bom-dia
bom-dia, senhor José,
bom-dia, dona Maria.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, sol amarelo,
bom-dia, ribeira fria,
bom-dia, flores do jardim,
bom-dia, cães da cidade,
bom-dia, ó bicicleta,
bom-dia de liberdade.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia,
bom-dia, lixo da praia
e cascas de melancia,
bom-dia, guerra que matas
bom-dia, mesa sem pão,
bom-dia, tecto de céu,
bom-dia, voz sem canção.

Os meninos educados
de manhã dizem bom-dia
e partem como andorinhas
em busca de um novo dia.

Boas noites, de João de Deus

 Estava uma lavadeira
A lavar n'uma ribeira,
Quando chega um caçador.
– Boas tardes, lavadeira!
– Boas tardes, caçador!
– Sumiu-se-me a perdigueira
Ali naquela ladeira,
Não me fazeis o favor
De me dizer se a brejeira
Passou aqui a ribeira?
– Olhe que d'essa maneira
Até um dia, senhor,
Perdereis a caçadeira,
Que ainda é perda maior.
– Que me importa, lavadeira!
Aqui na minha algibeira            
Trago dobrado valor.            
Assim eu fora senhor            
De levar a vida inteira            
Só a ver o meu amor            
Lavar roupa na ribeira...          
– Talvez que fosse melhor,            
Ver... coser a costureira!            
Vir, de ladeira em ladeira,            
Apanhar esta canseira            
E tudo só por amor            
De ver uma lavadeira            
Lavar roupa na ribeira...            
É escusado, senhor!            
– Boas noites... lavadeira!        
– Boas noites, caçador!..



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