quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Do hotel para um campo de refugiados:
a nova vida de um sabonete


— Já lavaste as mãos?

— Lavaste as mãos antes de começar a comer?

— Lavaste as mãos quando vieste da escola?

— E não te esqueças de usar o sabonete!

Quantas vezes não ouvimos as nossas mães repetirem estas frases vezes sem conta?

Chegámos até a odiar o sabonete, que nos atrasava para o lanche, com aquele bolo de que tanto gostávamos, ou nos fazia perder tempo quando, ansiosos, só queríamos pegar no pão e começar a ler o livro que tínhamos trazido da biblioteca ou que um colega nos emprestara. Ou que nos picava nos olhos quando a mãe, zangada por não lavarmos a cara, no-la segurava com firmeza e, com gestos decididos, nos esfregava a cara, as orelhas, e o pescoço com o sabonete e a toalha molhada.

Mais tarde, era o cheiro do sabonete que nos fazia lembrar os ralhos da mãe, o lanche engolido à pressa nas tardes solarengas para não interromper demasiado tempo do jogo de futebol com os amigos. Para não falar no cheiro da mãe, da avó, da tia que nos visitava sempre pela Páscoa. E o cheiro a lavado, depois do banho? E quem não se lembra dos que eram guardados nas gavetas e que perfumavam os lençóis e a roupa interior?

O sabonete, odiado e amado, entrou de tal forma no nosso quotidiano que passou a banal, e do qual quase nem nos apercebemos. O ato de lavar as mãos está automatizado: abrir a torneira, molhar o sabonete, esfregar, secar. Já nem sabemos porque lavamos as mãos.

Mas… será assim em todo o mundo? Infelizmente, não é. Nos países menos desenvolvidos, o sabonete é um bem de luxo e o ato de lavar as mãos, que pode salvar tantas vidas, principalmente de crianças, não está ao alcance de todos.

♣♣♣♣

O ato de lavar as mãos, que até teve direito a dia mundial, 15 de Outubro, pode salvar a vida de milhares de crianças e adultos. Em países menos desenvolvidos de África, Ásia e América Latina, onde nem toda a gente tem acesso a sabão, a taxa de mortalidade por diarreia, febre tifoide, cólera, infeções respiratórias é elevadíssima. Em situações de catástrofes naturais ou em campos de refugiados, onde as condições de higiene são deficientes, as condições para a propagação de vírus aumenta perigosamente. Inacreditavelmente, a lavagem das mãos antes da preparação e ingestão de alimentos, após o uso dos sanitários, e, muito importante, durante o parto, reduz significativamente a taxa de mortalidade e a propagação dos vírus.

♣♣♣♣

Que o diga Derreck Kayongo, que, pela janela do jipe, vai olhando a paisagem do Quénia que desliza à sua volta. Nascido no Uganda e com uma infância agitada, é com emoção que acompanha pessoalmente a entrega de uma carga peculiar. O seu e os jipes que o seguem estão carregados com cinco mil barras de sabonete que irão ser entregues em diversos orfanatos e organizações não-governamentais que trabalham com refugiados. Sabonete que provavelmente vai salvar da morte centenas de pessoas.

Derreck mal pode esperar pela primeira paragem. A cabeça começa a encher-se de recordações da infância e os olhos de lágrimas. Uma vida e uma infância estável no Uganda abruptamente interrompida pela tomada de poder do ditador Idi Amim e o começo da guerra com a Tanzânia, que obrigou a família a refugiar-se no Quénia durante alguns anos. Primeiro a mãe e as irmãs e, cerca de um ano mais tarde, o resto da família abandona a casa e o país. Foi o início de uma vida difícil. Um novo país, novos costumes, uma nova língua. Derreck, que até ali só conhecia as preocupações típicas de uma criança saudável, deparou-se repentinamente com uma realidade assustadora: a de milhares de pessoas que não têm nada, des de casa, comida, sabão para tomar banho. A sua família era mais uma das centenas de refugiados.

Nestas circunstâncias, as condições de higiene têm um papel fundamental. Dadas as condições de vida, a má nutrição e a falta de higiene, as epidemias e as doenças propagam-se facilmente e a morte é inevitável. Conscientes disso, cada sabonete recebido pela família era religiosamente guardado após ser utilizado.

Derreck não esquece a tristeza que sentiu quando soube que o seu amigo Balondemu tinha morrido. Na sua cabeça ressoam as lágrimas silenciosas das mães que viam os filhos morrer de cólera ou febre tifoide. A mãe dele obrigava os filhos a lavar as mãos com frequência, mas nem todas as pessoas podiam fazê-lo e nem todas sabiam que aquele gesto podia salvá-las. Aluno aplicado, teve a sorte de ter acesso à escolaridade. Quando terminou a universidade no Quénia partiu para os Estados Unidos da América, onde a primeira noite contribuiu decididamente para fortalecer a sua vontade de ajudar a lutar contra a pobreza.

No quarto do hotel deparou com três sabonetes: um para a cara, outro para as mãos, e um último para o corpo. Perplexo, Derreck desembrulhou o primeiro e cheirou-o. Resolveu guardar os outros na bagagem. No dia seguinte, ao voltar ao quarto, encontrou mais três sabonetes, que rapidamente se juntaram aos que estavam na mala. E assim sucessivamente. Ao fim de alguns dias, com a consciência pesada, desceu à receção.

— Venho devolver os sabonetes. Lamento, mas não tenho dinheiro para os pagar.

— Não se preocupe — tranquilizou-o o rececionista. —Todos os hóspedes têm direito a três sabonetes por dia. E podem levá-los para casa. Aliás, é o que muitos fazem.

Derreck não podia crer no que estava a ouvir.

— E… o que fazem aos que sobram? — perguntou atónito.

— Por razões de higiene vão para o lixo.

Ficou perplexo. Como era possível deitar fora uma preciosidade daquelas?

De volta ao quarto, pegou num pequeno sabonete e ficou a pensar nas duas realidades tão distintas que acabava de confrontar: no Uganda, onde havia um sabonete por casa, e que era usado por todos, até pelas visitas. Isso, quando havia possibilidades financeiras para o comprar. Num país onde os salários são tão baixos, o preço do sabonete era elevado e, comprá-lo, um luxo, que podia muito bem ser adiado. E ali estava ele num país onde havia mais do que um sabonete por pessoa, até para as diferentes partes do corpo, que ia para o lixo no dia seguinte. Os números começaram a galopar na sua cabeça. Quantos sabonetes eram desperdiçados ao fim do dia? Só naquele hotel? E em todos os hotéis dos EUA… da Europa… do mundo?

Lembrou-se de todas as crianças que conheceu enquanto viveu no Quénia e de muitas outras que viviam nas mesmas condições e cujas vidas podiam ser salvas se tivessem um sabonete na mão. Aquele resto de sabonete. De repente, uma cadeia de palavras apareceu-lhe em mente: Hotel-sabonete-higiene-refugiados. Telefonou ao pai para lhe contar o que acabara de acontecer. E foi com a ajuda deste que começou o seu projeto Global Soap Project, iniciado anos mais tarde, em 2009, e que o levava agora naquela viagem de regresso ao Quénia.

A ideia de Derreck fora reutilizar os restos de sabonetes que só são usado uma vez, e simplesmente derretê-los, esterilizá-los, convertê-los numa nova barra e fazê-los chegar às populações necessitadas – sem custos para estas.

Começou por apresentar a sua ideia aos hotéis, o que levou meses. Foram raras as recusas. Usando os conhecimentos do pai, que trabalhou numa fábrica de sabão no Uganda, começou por fazer este trabalho na cave da sua casa, em Atlanta. Comprou uma pequena máquina de fazer sabão, e com a ajuda da família, depois de separados por proveniência, os sabonetes eram lavados para retirar as impurezas, derretidos e transformados em novas barras.

Pouco a pouco, o projeto foi crescendo e ganhando dimensão. A cave tornou-se demasiado pequena para tanto trabalho. E o número de doadores e de voluntários foi também aumentando.

Derreck consegue fazer chegar os seus sabonetes onde eles são precisos, contactando diretamente as instituições no terreno; da Ásia à América Latina, passando por África, já distribuiu mais de cem mil sabonetes em mais de dez países. Quando saiu o primeiro carregamento para o Quénia, Derreck fez questão de acompanhá-lo pessoalmente. Quer ser ele a entregar os sabonetes às crianças que vivem como ele viveu.

♣♣♣♣

— Derreck, estamos quase a chegar.
O motorista arranca-o das suas recordações.
— Preparado?
Derreck há muito que sonha com este momento mas nunca conseguiu preparar-se realmente. A emoção de voltar àquele país que o acolheu durante a guerra, de ver as crianças sorridentes que os esperam e de saber que vão beneficiar com aquela carga, fez com que chorasse o caminho todo.
E ali estava ele, a distribuir sabonetes; a distribuir vida e esperança àquelas crianças que agradecem com um sorriso radiante, assim que desenterram o nariz da barra branca de sabonete que lhes foi depositada nas mãos. Depois pedem-lhe que lhes conte a história dos sabonetes. Já a contou milhares de vezes mas nunca se cansa. Ele, que foi uma daquelas crianças, teve uma ideia e concretizou-a. Graças ao seu passado, que não quis esquecer, e à sua determinação.
Por vezes, são as coisas mais simples, aquelas a que raramente damos valor, que podem fazer a diferença. Como no caso de um banal sabonete usado que ia para o lixo.

I. Birnbaum

A partir de: http://www.globalsoap.org
FIM
Paciência
A cólera obscurece a mente e impede o raciocínio. Cria situações insustentáveis, das quais todos saem prejudicados. A paciência é uma virtude fundamental, que se deve pôr em prática diariamente, porque as contrariedades são inevitáveis e é um erro perder-se a compostura por causa delas.

Esta história começa em 1947. Era um belo dia de Primavera e encontrava-me na Florida a lavrar um campo para um amigo. Fora objetor de consciência durante a Segunda Guerra Mundial e estava muito feliz por voltar a casa e ao trabalho do campo, a que já me dedicava antes da guerra.

Um grupo de condenados trabalhava numa conduta de esgotos numa das extremidades do campo. Parei perto do matagal que rodeava aquele lado do campo e ajoelhei-me para arranjar e olear o arado. Enquanto deitava óleo, ouvi um ruído que me fez olhar para cima. Dos arbustos surgiu um homem. Vestia a farda às riscas pretas e brancas dos condenados. Carregava aos ombros uma moca pesada que parecia o cabo de uma ferramenta.

Parou a poucos metros de mim e as primeiras palavras que disse foram:

― Preciso muito de dinheiro e vou levar tudo o que você tiver.

Compreendi imediatamente que não podia fugir nem lutar com ele. Com a moca quase em cima da minha cabeça, não teria qualquer hipótese. Por isso, fiz o que ele menos esperava. Olhei-o nos olhos.

― Se precisa assim tanto de ajuda, porque não o diz? Ninguém precisa de se magoar.

Continuei a olear o arado. Ele ficou especado e, em seguida, baixou a moca. Quando o fez, disse-lhe:

― Com que então vai fugir? Tem consciência de que vai ser um homem procurado?

Respondeu que sim, mas que os capatazes eram maus. Falámos mais alguns minutos enquanto eu oleava e arranjava o arado. De repente, deixou cair a moca.

― Ganhou ― concedeu. ― Vou voltar.

Deu meia volta e, sem dizer palavra, desapareceu no meio dos arbustos.

Depois de dar graças pela força e pela orientação que recebera, liguei o tractor e continuei o trabalho. Sempre que me dirigia para aquele lado do campo onde se encontravam os condenados, tentava ver se o homem estava com eles, mas era demasiado longe para ter a certeza.

A segunda parte desta história tem lugar muitos anos mais tarde. Pusera de parte a agricultura e tornara-me Diretor do Clube de Rapazes da minha terra: Jacksonville, na Florida. Uma noite vinha de uma reunião, ansioso por chegar a casa. Mesmo antes de um cruzamento, dois carros chocaram de frente. À medida que me aproximava, vi os dois condutores, aparentemente sem ferimentos, saírem dos carros e correrem um para o outro, de punhos em riste. Um deles caiu por terra e o outro, furioso, começou a pontapeá-lo e a bater-lhe com uma chave-inglesa.

Tive a forte tentação de dar meia volta em direção a casa, mas as palavras surgiram-me muito claras: “Não, Calhoun! Tens de parar e ajudar!” Por isso, um pouco contra a vontade, pensei no que poderia fazer: não havia tempo para ir à procura de um telefone e chamar a polícia. O homem morreria rapidamente se os pontapés e os murros não parassem.

De novo, a pequena voz interior falou: “És forte e os teus músculos não te foram dados só para o desporto. Age depressa!”

Saltei para fora do carro e atravessei o curto espaço entre mim e os dois homens: um inconsciente no passeio, o outro persistindo no seu ataque enraivecido. Pus-me atrás deste, iluminado apenas pela ténue luz de uma estação de serviço próxima. Antes que ele se apercebesse, agarrei-o pelos braços, puxando-os para os lados. Ofereceu resistência mas eu mantive-me firme. Tropeçámos no passeio e caímos perto do outro homem inconsciente. Continuei a fazer força. Não lhe bati nem lhe provoquei qualquer ferimento. Em breve, apareceu um homem da estação de serviço e ofereceu ajuda. Pedi-lhe que chamasse a polícia.

A polícia chegou rapidamente. Eu continuava a agarrar o homem que se debatia e me chamava nomes nada elogiosos. O outro continuava inconsciente. A polícia trouxe algemas e estavam quase a algemar-me quando expliquei o que se passara. Agradeceram o meu gesto e deixaram-me ir para casa, para junto da minha mulher, que entretanto se perguntava por que razão demorava eu tanto. Depois de me ter vindo embora, dei-me conta de que, naquela noite escura, não tinha olhado para a cara de nenhum dos homens, o que lamentei.

A história também não termina aqui. Muitos anos mais tarde, estava a fazer voluntariado no hospital psiquiátrico da região, ajudando nas actividades lúdicas, quando, um dia, uma funcionária telefonou para me dizer que um antigo doente a tinha contactado. Chamava-se George Harris e tinha-me reconhecido no hospital. Assegurei-lhe que não conhecia nenhum George Harris, mas ele tinha-lhe dito que era o condenado fugitivo que me ameaçara naquele campo. E que era também o condutor que batera no outro homem e que o teria morto se eu não o tivesse feito parar. Se não tivesse sido eu, ele ter-se-ia tornado um assassino.

Depois disso, sofrera um esgotamento cerebral e ficara no hospital psiquiátrico durante algum tempo. Quando saiu, foi trabalhar e começou a poupar dinheiro. Agora, queria enviar-me um presente pelo correio. A funcionária tentou convencê-lo a vir trazê-lo pessoalmente, mas ele não quis. Por isso, uns dias mais tarde, passei pelo escritório dela. Quando abrimos a encomenda, vimos um relógio Bulova que, ainda hoje, vinte anos volvidos, funciona perfeitamente.
Pensei que seria este o final da história, mas não. Embora tenha mudado muitas vezes de casa, George Harris não perdeu as minhas coordenadas. Escrevia a dizer-me que estava bem e mandou-me vários presentes.” Escrevi sempre de volta, a agradecer-lhe, para o apartado que vinha nas encomendas.

Nunca respondeu às minhas cartas, mas, um dia, quando estava a construir uma chaminé na Carolina do Norte, apareceu um carro com matrícula da Virgínia. O condutor dirigiu-se a mim e perguntou:

― É Cal Geiger, não é?

― Sim ― disse. ― Quem é o senhor?

― O meu nome é George Harris.

Contou-me que estudara e se tornara professor. Tinha mulher e dois filhos. Agora estava bastante doente e queria ver-me e agradecer---me pessoalmente, antes de morrer. Voltou para o carro e partiu. Calhoun Geiger , M. Clark; E. Briggs; C. Passmore

Responsabilidade
É de lamentar a falta de sentido de responsabilidade de muitos jovens, que alegam o direito à liberdade, sem perceberem que esta se torna um conceito vazio quando não é acompanhada por uma atitude atenta e responsável. Aqueles que, no exercício da sua liberdade, não respeitam os direitos dos outros dificilmente poderão viver em sociedade, sem atrair para as suas vidas problemas de toda a índole.

Foi cinco dias depois dos meus anos. Tinha dezassete anos e cinco dias. Era terça-feira, 25 de Novembro. Chovia. Apanhei o autocarro porque chovia muito quando saí da escola. Só havia um lugar vago. Sentei-me e tentei afastar a nuca da gola, que ficara encharcada enquanto esperava na paragem do autocarro, e parecia a mão gelada da morte. Sentei-me e senti-me culpado por ter apanhado o autocarro.

Culpado por ter apanhado o autocarro. Por apanhar o autocarro. Vejam: a coisa pior quando se é jovem é a banalidade.

A razão por que me sentia culpado por ter apanhado o autocarro é esta: tinham passado cinco dias desde os meus anos, não é verdade? Para o aniversário, o meu pai dera-me um presente. Um presente de arromba. Inacreditável. Deve tê-lo planeado e andado a poupar durante anos, literalmente, para o comprar.

O presente estava lá, à minha espera, quando cheguei das aulas. Estacionado em frente de casa, mas nem dei por isso. O meu pai passou o tempo a fazer alusões indirectas, mas não percebi. Por fim, teve de me levar até lá fora e mostrar-mo. Quando me deu as chaves, a sua cara crispou-se toda, como se lhe apetecesse chorar de orgulho e de alegria.

Era, é claro, um carro. Não vou dizer qual era a marca, porque penso que já nos rodeia demasiada publicidade. Era um carro novo. Com relógio, rádio, todo artilhado. Levou uma hora a mostrar-me todos os extras.

Eu aprendera a guiar e em Outubro tirara a carta de condução. Parecia-me útil, em caso de emergência, e podia fazer alguns recados à minha mãe e sair sozinho se quisesse. Ela tinha um carro, o meu pai tinha um carro e agora eu tinha um carro. Três pessoas, três carros. A única chatice é que eu não queria um carro.

Quanto terá custado a coisa? Não perguntei, mas deve ter sido, pelo menos, três mil dólares. O meu pai é contabilista e nós não temos quantias destas para coisas desnecessárias. Com aquele dinheiro, eu podia ter vivido um ano ou mais no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, se admitíssemos que conseguia uma bolsa de estudo. Foi o que imediatamente me passou pela cabeça, antes mesmo de ele abrir a porta reluzente. Podia ter colocado o dinheiro numa conta--poupança. É claro que eu podia vender o carro e não perderia muito dinheiro se o fizesse rapidamente. Pensava nisso enquanto ele me punha as chaves na mão e dizia: "É todo teu, filho!" E a cara dele tremia outra vez.

E eu sorri. Penso.

Fomos imediatamente dar uma volta no carro, é claro. Conduzi até ao parque, ele trouxe-o de volta, estava ansioso por pôr as mãos no volante e tudo correu bem. O problema só surgiu quando, na segunda--feira seguinte, descobriu que eu não fora de carro para o liceu. Porquê?

Não fui capaz de lhe explicar. Nem eu percebia bem. Se tivesse levado aquilo para o liceu e o tivesse arrumado lá no parque, desistia dele. Era meu. Pertencia-me. Era dono de um carro novo. Todo artilhado. A malta no liceu diria: “Eh, pá! Olha para aquilo! Porreiro! Topem o Griffiths-Acelera!”. Alguns deles gozariam, mas outros admirá-lo-iam verdadeiramente, e quem sabe se também a mim, por ter a sorte de o possuir. E isso é que eu não ia aguentar. Eu não sabia quem era, mas uma coisa é certa: não queria ser um acessório de um carro.

Ursula K. Le Guin ,Tão longe de sítio nenhum ,Lisboa, Ed. Fragmentos, s/d

Retidão
Adoptar o princípio de mentir sempre que convém atrai a desconfiança dos demais e leva à solidão. Quem engana acabará por ser enganado, porque quem semeia joio não pode colher trigo. Nada é mais importante do que uma consciência tranquila, embora o caminho da verdade nem sempre seja fácil.

Era uma vez um rapaz bravio que gostava de pregar partidas e fazer matulices, só por embirração. Era muito antipático este rapaz.
Mas emendou-se. Eu conto como foi.
Um dia, por maldade, deu-lhe na veneta atormentar uma pobre velhota, que vivia numa casinha pobre, à beira do povoado. Foi para uma pedreira que havia perto e pôs-se a atirar pedras e a rebolar pedregulhos, que iam cair no quintal da velhota. Para o que lhe havia de dar!?
No fim do seu feito, já cansado, aproximou-se da casa da velhinha, para ver de perto os resultados da sua proeza. Andava a velhinha a recolher as pedras, espalhadas pelo quintal.
— Foi uma bênção que me caiu do céu — dizia a velhinha. —Precisava, há que tempos, de consertar o muro do quintal, mas não tinha forças para trazer tantas pedras. Se não fosse esta avalanche...
O rapaz ficou de boca aberta. E mais sem fala ficou quando a velhinha lhe propôs:
— Bom rapazinho, importas-te de me ajudar a consertar o muro?
Ele, que tinha de fazer de conta que era um bom rapazinho, não teve outro remédio. Passou o resto do dia a acartar pedras, as pedras que ele lançara do alto do monte.
No fim da tarefa, a velhota agradeceu-lhe o trabalho e deu-lhe um grande boião de mel. O rapaz lá se foi, cansado e a lamber os beiços, um tanto confundido. À noite, quando se deitou, estava cá com uma dor nas costas, que não lhes digo nada! Mas regalado com o mel que a velhinha lhe dera.
Ora pois! Serviu-lhe de emenda. Mudou de intenções. Não posso garantir se, dessa vez em diante, nunca mais pregou partidas. Um diabinho não se transforma de repente num santinho. É exigir demais. Mas, na verdade, deixou-se de brincadeiras tolas.
Sem que possa ser considerado um virtuoso rapazinho, também já não é um venenoso rapazote. Nem rapazinho, nem rapazote. Apenas um rapaz. Nem muito mau, nem muito bom. Como quase toda a gente, aliás.

António Torrado

Tolerância
Ser-se capaz de aceitar a diferença é um sinal de maturidade. Aqueles que são diferentes nem por isso são inferiores. É um erro levantar-se barreiras onde deveria existir o diálogo. Atos hediondos têm sido cometidos ao longo dos tempos por governantes cegos pela própria intolerância e por falsas ideias de superioridade que se estenderam às multidões como um rastilho de pólvora.
Chico vive numa aldeia perdida num dos muitos países de África. Podia ser em Angola, no Senegal ou no Ruanda. Podia chamar-se Chico, Abuabar ou N’gouda. Há muitos Chicos em África. Chicos de olhos brilhantes e pés descalços, com a cabeça povoada de sonhos, com vontade de ter um futuro para viver.
Como quase todos os seus companheiros, Chico levanta-se bem cedinho pela manhã. Ajuda a mãe a tratar das duas cabrinhas, Flor e Kenchú, e só depois parte para a escola.
Chico gosta particularmente de Flor. Foi ele quem lhe pôs o nome, no mesmo dia em que ela chegou à palhota, apertada nos braços fortes do pai, ainda mal se segurando nas patinhas frágeis, e a berrar pela mãe. Fora um vizinho que lha dera, como forma de pagar a ajuda no arranjo da cabana.
Na primeira noite, Flor berrou todo o tempo a chamar pela mãe e nem deixava que Kenchú tentasse acalmá-la com lambedelas carinhosas.
Deitado na sua esteira, Chico não conseguia adormecer. Entendia tão bem a cabrinha! O pai dele arranjara trabalho longe, lá na cidade, e só podia vir a casa de quinze em quinze dias. Às vezes, para fazer mais algum dinheiro, ficava fora mais tempo. Quando chegava a hora de regressar à cidade, o pai dizia-lhe que se portasse como o chefe da casa e que devia obedecer à mãe. Como se fosse preciso dizer-lho! Ele bem sabia que a mãe, com o trabalho na fazenda do Sr. Macedo, com os gémeos de três anos e Linita, de oito, não podia fazer tudo e precisava da ajuda dele.
Sempre que o pai partia, Chico ficava triste o resto do dia, mas depois passava. Quando a saudade lhe enchia o peito até cima e parecia querer saltar-lhe pelos olhos, apertava com muita força na mão o seixo que o pai lhe dera naquela tarde em que Chico pescara o maior peixe da sua vida. O pai explicara-lhe que tinha arranjado na cidade um bom trabalho, mas que ia deixar de poder vê-los todos os dias. Depois, metera a mão na água e tirara dois seixos, os mais bonitos que Chico alguma vez vira, e colocou-lhe um na palma da mão.
— Quando tiveres muitas saudades minhas, apertas com força esta pedrinha. A tua saudade vai passar para a minha pedra e eu vou recebê-la e tu vais sentir-te acompanhado.
Em certas ocasiões, as saudades eram tantas que acabavam por conseguir irromper para fora e duas lágrimas teimosas, quentes e grossas, deslizavam suavemente pela face castanha-escura de Chico.
Ah, como ele compreendia a cabrinha malhada com a manchinha branca na testa! Esgueirou-se para fora da palhota sem acordar os pais e os irmãos que dormiam, saiu para a noite quente e húmida e entrou na cabana dos animais. Passou a noite inteira deitado ao lado de Flor, que se acalmou e acabou por adormecer com a cabeça poisada no peito de Chico. No dia seguinte, já aceitou de bom grado o leite que Kenchú lhe oferecia.
Os pais estranharam a mudança mas, durante algum tempo, a causa dessa transformação ficou um segredo entre Chico, Flor e Kenchú.
Só depois de ordenhadas as cabras e de lhes ter deitado de comer, é que Chico saía para a escola.
À saída da aldeia encontrava-se com Djimbu e Mkembé, os seus dois melhores amigos, e juntos faziam o caminho até à escola das Missões.
Ir à escola era do que Chico mais gostava. O seu maior sonho, já segredado para dentro das orelhas de Flor e contado ao pai, durante uma tarde de pesca, era, um dia, poder ensinar outros meninos como ele a ler e a escrever. E haveria de trabalhar tanto, que iria até conseguir dinheiro para comprar uma bicicleta novinha para os irmãos, igual a uma que vira um dia. Bem, do que ele gostava mesmo, mesmo, era de um dia poder ter um carro como o do Sr. Macedo, o dono da fazenda onde a mãe às vezes ia trabalhar. Mas esse era o seu maior segredo e ainda não se atrevera a contar a ninguém, nem mesmo a Flor. Claro que, se o contasse a Djimbu ou a Mkembé, eles também iam querer, e deixava de ser um desejo só dele…
Sempre que o Sr. Macedo vinha à casa grande, somente de tempos a tempos, Chico ficava parado no caminho a observar o grande carro branco e brilhante, tão brilhante que, quando o sol cintilava nos vidros, até fazia doer os olhos, e assim ficava perdido no seu segredo.
Ao chegar à escola, Chico notou um alvoroço desacostumado. Alguns homens em manga de camisa transportavam caixas para dentro do edifício da escola. Pareciam todos muito bem dispostos, e até o Palhinhas, o cão acastanhado do professor, soltava latidos alegres e abanava a cauda, bem disposto.
Chico, Djimbu e Mkembé estugaram o passo. Que confusão!
Quando a velha furgoneta partiu, deixando a velha escola atafulhada de caixas, sentaram-se, de pernas cruzadas no chão, e o professor deu início à abertura das caixas.
Era uma encomenda vinda da Europa com uma oferta de material para a escola. Perante o olhar fascinado das crianças, o professor foi retirando, com largos gestos teatrais mas sinceros, folhas soltas, restos de cadernos, cadernos e blocos novos e usados. Chico nem queria acreditar! Aquele material podia não ser novo, mas para eles isso não tinha a menor importância e era-lhes muitíssimo útil. Quem o enviara parecia adivinhar exactamente aquilo de que estavam a precisar!
O professor continuou a retirar lápis, lápis novos e usados, restos de lápis, lápis de cor – que bonitas as cores! – canetas – eram tão poucas as que lhes chegavam à escola! – borrachas que apagavam o que o lápis escrevia. Mas o melhor de tudo vinha no último caixote…
Quando o professor o abriu, o rosto iluminou-se num sorriso. Muito lentamente, como um mágico que tira um coelho da cartola, o professor foi erguendo o braço. As crianças, mortas de curiosidade e com os olhos a brilhar, sustinham a respiração. O professor mostrou… Livros!! Livros com imagens cheias de cor! Chico sentiu o coração a bater mais rápido. Parecia-lhe que estava a viver um sonho e só tinha medo de que a mãe o acordasse naquele momento.
Livros! Chico era capaz de ficar horas a fio mergulhado e perdido nas páginas de um livro. Ainda não tinha lido muitos. Só três dos meros vinte que constituíam a magra biblioteca da escola. Podia ser muito reduzida, mas os meninos achavam-se importantes por os terem e manuseavam-nos carinhosamente e com muito cuidado. Chico tinha lido os três mesmo até ao fim, e tantas, tantas vezes, até saber as histórias de cor e poder contá-las à noite, em volta do lume, à mãe, ao pai e aos irmãozinhos, que o escutavam com os grandes olhos castanhos muito abertos de espanto e com a respiração suspensa. Se Chico pudesse, levaria um daqueles para casa para lhos ler. Ficariam certamente ainda mais orgulhosos dele. Se algum dia conseguisse ganhar dinheiro, haveria de poupar até conseguir juntar o suficiente para comprar um grande livro de histórias ou de aventuras para ler aos irmãos. O maior e o mais grosso que houvesse à venda.
Os pensamentos de Chico foram interrompidos pela passagem do professor. Já tinha partido os lápis em pedaços mais pequeninos, que distribuía naquele momento pelos alunos. Cada um ia encaixar o seu pedacinho de lápis numa caninha ou num pau para conseguir aproveitá-lo até ao fim. Tinham autorização para levar o material para casa, mas ninguém o levava com medo de perder as preciosas folhas de papel ou os lápis.
Chico pegou no seu, como quem recebe em mãos uma relíquia ou um tesouro. Não, hoje ia ter muito cuidado. Da última vez que preparara o lápis, no preciso momento em que estava a cortar a cana, o Sr. Macedo apareceu no seu carro brilhante, a apitar a uma gazela que se atravessara no caminho. Por momentos, Chico esqueceu tudo o que estava a fazer, imaginando-se sentado nos bancos macios, por trás do volante, com o vento a acariciar-lhe a face, e a apitar a impalas, zebras e macacos. Zás! Deixou cair o braço e cortou o bico do lápis, que, se já era pequeno, ainda mais reduzido ficou.
Que tristeza! Até deu pontapés no velho embondeiro que se erguia à saída da cabana, tão furioso ficou. Porque é que o Sr. Macedo tinha de aparecer precisamente naquele momento? Por causa daquele carro enfeitiçado, já não teve lápis para escrever ao pai – o encarregado da fábrica lia as cartas aos empregados – naquela altura em que ele esteve muito tempo sem vir a casa. Não, desta vez ia estar com mil olhos. Nem que passassem mesmo ao lado dele dois carros a apitar, ele ia ceder à tentação de olhar!
Ao regressar a casa, Chico apertava com força o seixinho do rio. Tinha tantas novidades para contar em casa! E tanta coisa para escrever ao pai! Queria dizer-lhe que, da próxima vez que viesse a casa, ele, Chico, iria ter novas histórias para contar à noite, junto ao fogo.

I. Birnbaum ,M. Clark; E. Briggs; C. Passmore ,Lighting candles in the dark

A estrela de Érica
Em 1995, cinquenta anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, encontrei a mulher de que fala esta história. O meu marido e eu estávamos sentados na borda de um passeio em Rothenburg, na Alemanha. Observávamos uns trabalhadores a limparem as ruínas do telhado da Câmara. Na noite anterior, um tornado tinha-se abatido sobre esta bonita aldeia medieval. Havia entulho um pouco por todo o lado. Um velho comerciante disse-nos que os estragos causados por este tornado se assemelhavam aos da última ofensiva dos Aliados durante a guerra. O comerciante entrou na sua loja, e uma senhora, sentada perto de nós, apresentou-se como sendo Erika. Perguntou-nos se tínhamos vindo fazer turismo naquela região. Quando lhe disse que vínhamos de Jerusalém, onde passáramos duas semanas a fazer pesquisas, confessou-nos, com um suspiro, que desejava muito lá ir mas que não tinha dinheiro para a viagem. Ao ver uma estrela de David pendurada ao seu pescoço, disse-lhe que, no regresso de Israel, tínhamos passado pelo campo de concentração de Mauthausen, na Áustria. Erika confessou-nos que, um dia, tinha tentado visitar o campo de Dachau, mas que não conseguira franquear a porta. Depois, contou-nos a sua história…

Entre 1933 e 1945, seis milhões de homens e mulheres do meu povo foram mortos. Muitos foram fuzilados. Muitos morreram de fome. Muitos foram incinerados nos fornos ou asfixiados nas câmaras de gás. Eu escapei.

Nasci em 1944.

Não sei o dia.

Não sei como me chamava ao nascer.

Não sei em que cidade nem em que país nasci.

Não sei se tive irmãos ou irmãs.

O que sei é que, apenas com alguns meses, escapei ao Holocausto.

Imagino muitas vezes como seria a vida dos membros da minha família durante as últimas semanas que passámos juntos. Imagino o meu pai e a minha mãe, despojados de todos os seus bens, forçados a abandonar a sua casa, enviados para o gueto.

Talvez depois tenhamos sido expulsos do gueto. De certeza que os meus pais tinham pressa de deixar o bairro rodeado de arame farpado para onde tinham sido relegados, de escapar ao tifo, ao excesso de pessoas, à imundície e à fome. Mas teriam alguma ideia do local para onde estavam a ser enviados? Ter-lhes-iam dito que iam para um local mais acolhedor, onde teriam comida e trabalho? Terão chegado até eles os rumores sobre os campos da morte?

Pergunto-me o que terão sentido quando os conduziram à estação, juntamente com centenas de outros judeus. Amontoados num vagão de transporte de animais. De pé, uns contra os outros, por falta de espaço. Terão entrado em pânico quando ouviram correr os ferrolhos?

De aldeia em aldeia, o comboio deve ter atravessado paisagens campestres estranhamente poupadas ao terror. Durante quantos dias ficámos naquele comboio? Quantas horas os meus pais passaram apertados um contra o outro?

Imagino que a minha mãe devia ter-me bem encostada a ela para me proteger dos maus cheiros, dos gritos, do medo, que reinavam neste vagão lotado. Tinha de certeza compreendido que não íamos para um lugar seguro.

Pergunto-me onde estaria exactamente. No meio do vagão? O meu pai estaria junto dela? Ter-lhe-á dito que fosse corajosa? Terão falado do que iam fazer?

Quando teriam tomado aquela decisão? Será que a minha mãe disse “Desculpa. Desculpa. Desculpa.”? Terá aberto a custo um caminho por entre aquela mole humana até à janela do vagão? Terá murmurado o meu nome ao embrulhar-me num cobertor bem quente? Terá coberto a minha cara de beijos e dito que me amava? Terá chorado? Rezado?

Logo que o comboio abrandou, ao atravessar uma aldeia, a minha mãe deve ter espreitado pela fresta do vagão. Ajudada pelo meu pai, deve ter afastado o arame farpado que ocultava a abertura. Deve ter esticado os braços para a luz pálida do dia. A única coisa que sei com certeza foi o que aconteceu a seguir.

A minha mãe atirou-me pela janela do comboio.

Atirou-me para cima de um pequeno quadrado de relva, junto de uma passagem de nível. Havia pessoas à espera de que o comboio passasse; viram-me cair do vagão de carga. No caminho que conduzia à morte, a minha mãe lançou-me à vida.

Alguém pegou em mim e levou-me para casa de uma mulher que se ocupou de mim. Que arriscou a vida por mim. Calculou a minha idade e atribuiu-me uma data de nascimento. Decidiu que me chamaria Erika. Deu-me um lar. Alimentou-me, vestiu-me, mandou-me à escola. Fez tudo por mim.

Casei aos vinte e um anos com um homem maravilhoso. Aliviou muita da tristeza que me assaltava com frequência, percebeu o meu desejo de pertencer a uma família. Tivemos três filhos, que hoje têm os seus filhos também. No rosto deles, reconheço o meu.

Dizia-se outrora que o meu povo seria um dia tão numeroso como as estrelas do céu. Entre 1933 e 1945 caíram seis milhões de estrelas do céu. Cada uma delas corresponde a um membro do meu povo, cuja vida foi rasgada, cuja árvore genealógica foi arrancada.

A minha árvore lançou raízes.

A minha estrela ainda brilha.

Ruth Vander Zee; Roberto Innocenti -L’étoile d’Erika Toulouse, 2003

Humildade


Sempre que começares o teu dia, lembra-te dos inúmeros dons que vais receber, desde o alimento à saúde do corpo. Lembra-te também do afecto que te tem sido dado, e de como é importante poderes crescer num ambiente de paz. Estes são
motivos para te alegrares.
Uma história da América Central
A cidade chama-se Marcala. Mar-ca-la, um nome tão bonito como os gladíolos que aqui nascem espontaneamente nos prados.
Mas a casa onde me encontro sentada é cinzenta por fora e cinzenta por dentro porque é feita de adobe que não foi rebocado. Tem uma porta de tábuas e taipais de madeira. Quando se fecham, fica tudo completamente às escuras. Inclino a cabeça para trás e vejo brilhar o céu, através do telhado, em tiras azuis claras.
Quando chover, vai pingar aqui dentro! — penso eu. — O chão de terra vai ficar enlameado e a cama e a mobília molhadas.
A mobília: uma cama para toda a família, uma cadeira, dois escabelos, um banco, e uns pregos na parede onde estão penduradas algumas peças de roupa.
Hoje o sol está a brilhar. Estamos em meados de Agosto, altura em que, nas Honduras, a estação das chuvas faz uma pausa.
— É o Verão pequenino! — costumam dizer as pessoas.
Como há duas semanas que não chove, já torna a haver muito pó, mas também flores entre os tufos de erva. Juntamente com o céu azul e as galinhas brancas, formam um quadro muito bonito que vejo pela porta aberta.
Só que a casa cinzenta deprime-me. Cinzento não é uma cor. Cinzento é como estar triste. Tenho a impressão de que olho para isto tudo com um olhar de repreensão. Porque sou rica e nem penso nisso.
Na Áustria tenho uma casa sem buracos no telhado, uma banheira, uma máquina de lavar roupa, comprimidos para a dor de cabeça no armário dos medicamentos, férias todos os anos…
À minha volta estão sentadas uma dezena de mulheres e de raparigas que não possuem nada disto. Têm preocupações com os filhos doentes, não têm dinheiro para medicamentos nem para roupas e sapatos. Muitas delas há muito que não recebem notícias dos maridos, que moram noutras cidades, porque em Marcala há pouco trabalho.
Nesta tarde, reuniram-se para falarem dos seus problemas e para lerem, em conjunto, a Sagrada Escritura. Tive autorização para vir também. Trouxe-me uma amiga que trabalha numa organização de ajuda ao desenvolvimento.
O que as mulheres contam quase me parece impossível: acordar todos os dias às quatro da manhã, comer unicamente tortilhas de milho e moê-lo à mão; apanhar lenha para o fogão e cortá-la em pedaços pequenos; trabalhar arduamente no campo, ir buscar água para a família toda. À noite, remendar a roupa junto ao fogão de lenha, porque não há outra luz. Em seguida, cair morta de cansaço na cama — ou em cima de uma pele de vaca, pois nem todos têm cama.
— Os meus filhos não podem ir todos à escola — diz uma mulher. — Não têm roupa para se vestirem todos ao mesmo tempo.
— A minha filha tem doze anos e já trabalha numa plantação, se não, não podíamos viver — diz uma outra, já só com um dente na boca.
Uma menina que parece ainda ir à escola, conta:
— Eu fico sentada das seis da manhã às seis da tarde diante da máquina de costura. Trabalho em casa. Faço oito vestidos por dia e tenho de os entregar pontualmente. Até como sentada à máquina.
À minha frente está sentada a filha da dona da casa. Deve ter uns oito anos.
— Inês! — diz a mãe, esticando o queixo na direção das galinhas que andam pelo quarto. Inês corre atrás das galinhas batendo palmas, e enxota-as para fora de casa. O irmãozinho, sempre agarrado ao seu vestido, deixou-o encostado ao banco, como um guarda-chuva. Parece ser um pouco parado. Enfiou a mão na boca e fica imóvel a chuchar nos dedos.
Inês senta-se novamente. Põe os braços à volta do irmão e, com o dedo grande do pé, espalma um monte de dejectos de galinha.
Sorrio-lhe. Inês retribui-me o sorriso. Levanta-se e vem sentar-se ao meu lado. O banquito é suficientemente largo para as duas.
Inês põe o irmão ao colo. Sinto-me lisonjeada, porque Inês é muito meiga. A sua cabeça fica à altura do meu ombro. Vejo os piolhos passearem-lhe na cabeça uns atrás uns dos outros. Deixei de sentir-me lisonjeada e começo a pensar como afastar-me de Inês.
A alguns metros de mim há uma cadeira vazia. Sento-me nela e fico contente por ninguém poder chegar-se agora à minha beira. Mas, ao mesmo tempo, envergonho-me. Então como é?! Falo de “amor ao próximo” e tenho medo de piolhos?
Talvez tenha magoado Inês. Ao lado dela, está agora sentado o irmão, ainda com a mão na boca.
Uma das mulheres lê em voz alta uma passagem da Bíblia, o Sermão da Montanha: Bem aventurados os que são pobres ao olhos de Deus... Refleti muitas vezes nesta frase. Como compreendê-la para que também eu possa ser“bem-aventurada”? De cada vez que ouço o Sermão da Montanha, também tenho vontade de ser pobre, mas pobre de uma forma que não doa. Parece-me agora que Jesus, ao proferir esta frase, quis dizer exatamente o que ela diz: “… os que são pobres aos olhos de Deus.” Tal como estas mulheres são pobres, mas não se esquecem de Deus. Acreditam que o Seu reino há-de vir e que elas hão-de poder trabalhar nele.
E é disso que estão a falar.
— Mesmo quando estou cansada, levanto-me de noite, se alguém precisar de mim — está a dizer uma delas. — Não queremos usar de violência, principalmente porque sabemos a dor que causa.
— Devemos lutar pelos nossos direitos com meios pacíficos, mesmo que seja perigoso. Como os líderes dos agricultores de Orlanjo. — Não devo desviar os olhos quando alguém é tratado com injustiça. Apesar disso, eu faço que, ignoro porque tenho medo.
As mulheres lembram-se de muitos exemplos das suas vidas. Nas suas vozes não há fingimento.
— A nossa horta comum também faz parte do reino de Deus, e também o sustentarmos os nossos filhos quando uma de nós adoece.
Enquanto isso, Inês fizera três tranças ao irmão. Remexe-se no escabelo para cá e para lá e por fim diz também:
—Eu fico a tomar conta do António, mas gostava mais de ir brincar…
Em cima da mesa está um gladíolo dentro de uma lata. Uma alegre mancha de cor, e só agora é que eu reparo nele. Será que foi Inês que o pôs lá?
Para terminar, as mulheres cantam uma canção “Yo tengo fé…” (Eu tenho fé)
Inês deita um olhar admirado à mãe. Talvez raramente a ouça cantar. Depois, Inês também canta. Não soa lá muito bem, mais parece uma galinha a cacarejar, mas canta entusiasmada.
As mulheres despedem-se.
—Anda comigo! — diz-me Inês. — Vou mostrar-te as nossas mangas!
Atrás da casa, há uma ladeira íngreme. A terra está fendida e esboroa-se sob os nossos pés. No cimo, está uma árvore cheia de frutos.
Inês abana um ramo. Segura na minha camisola, de forma a fazer uma bolsa, e põe as mangas lá dentro.
—Toma, são para ti!
Perdoa, Inês, por ter tido medo dos teus piolhos. E por, durante tanto tempo, não ter reparado no teu gladíolo.
Hannelore Bürstmayr ,Lene Mayer-Skumanz (org.) ,Hoffentlich bald

As pessoas que têm verdadeiro valor não gostam de se exibir.

São discretas e atentas aos outros.

Amizade
Um amigo verdadeiro é aquele com quem podes partilhar um livro, estudar as lições, falar do que te preocupa.
Receberás dele atenção e lealdade, e não inveja, mentira ou atitudes agressivas.
Sempre que Rogério sai de casa, esquece-se de alguma coisa. Quando se lembra, já é tarde demais.

E o que é que Rogério faz? Absolutamente nada. Só pensa: “Ainda bem que tenho o João”.

O João é o seu melhor amigo, um amigo a sério, um amigo com quem se pode contar.

O Rogério sabe muito bem o que é um amigo com quem se pode contar. Sempre que ele se esquece de alguma coisa, é o João que o livra de apuros.

O Rogério vai para a escola sem sapatilhas.

—Logo vi que ias esquecer-te! — diz o João, tirando um par de meias grossas do saco de ginástica, que entrega ao Rogério.

O Rogério chega ao parque sem bola.

—Logo vi que ias esquecer-te!

O João tem escondida atrás das costas a sua própria bola, que lhe estende.

O Rogério vai com o João à feira popular e não leva dinheiro na carteira.

—Logo vi que ias esquecer-te! — E como não se pode andar no carrocel sem pagar, o João tira uma moeda do bolso.

E é assim dia após dia: o Rogério esquece-se sempre de alguma coisa, o João, nunca… ou será que não?

Não. O João esquece-se sempre dos lápis de cera. Não adianta esforçar-se por fazer a pasta a tempo e horas. Quando chega a aula de desenho, o João não tem os lápis de cera na pasta.

O Rogério sabe que o João se esquece sempre deles, e por isso ele, Rogério, pode esquecer-se de tudo o que há no mundo, só não se esquece dos lápis de cera.

Estão na aula de desenho. O Rogério tira os seus lápis da pasta e põe-nos em cima da carteira. O João volta a ficar corado de vergonha porque deixou os lápis em casa, no quarto.

Então, o Rogério sorri e tira da pasta outra caixinha de lápis de cera, que pousa em cima da carteira do João.

—Logo vi que ias esquecer-te! — diz ele a sorrir.

Lene Mayer-Skumanz (org.) ,Hoffentlich bald, Wien, Herder Verlag, 1986

Cachorrinhos vendem-se

Um rapazinho apareceu por baixo do letreiro do dono da loja: Cachorrinhos vendem-se.

—Por quanto vai vender os cachorrinhos? — perguntou.

—Entre 30 a 50 euros — respondeu o dono da loja.

—Tenho 2 euros e 37 cêntimos — disse o rapazinho. — Posso vê-los?

O dono da loja sorriu e assobiou, e do canil saíram cinco bolinhas de pêlo. Um dos cachorrinhos ia ficando bastante para trás. O rapazinho distinguiu imediatamente o cachorrinho atrasado e que coxeava, e disse:

— O que é que tem aquele cãozinho?

O dono da loja explicou que ele não tinha o encaixe da anca e que seria sempre coxo. O rapazinho ficou entusiasmado:

— É esse cãozinho que eu quero comprar.

O dono da loja comentou:

—Não, não queres comprar esse cãozinho. Se o quiseres, dou-to.

O rapazinho ficou muito aborrecido. Olhou bem nos olhos o dono da loja e disse:
— Não quero que mo dê. Esse cãozinho vale cada cêntimo, tal como os outros e vou pagar o preço total. Vou dar-lhe 2 euros e 37 agora e 2 euros por mês até o ter pago.
O dono da loja insistiu.
—Não podes querer comprar este cãozinho. Nunca vai conseguir correr e saltar contigo como os outros cãezinhos.

A isto, o rapaz respondeu, baixando-se e levantando a perna da calça. Mostrou em seguida a perna esquerda muito torta e defeituosa, presa por um grande aro de metal. Olhou para o dono da loja e respondeu suavemente:

—Bom, eu também não corro lá muito bem, e o cachorrinho vai precisar de alguém que o compreenda!

Dan Clark ,Canja de galinha para a alma ,Mem Martins, Lyon Edições, 2002-Texto adaptado

Existem no mundo muitas pessoas que sofrem e não recebem qualquer auxílio.

Pensa nas formas possíveis de ajudar aqueles que necessitam.

Delicadeza

As palmeiras são nossas

O Dr. Magdy e eu saímos da luz tremeluzente mas suave da floresta de palmeiras para o sol forte, passámos junto das bananeiras e das últimas cabanas, pela passadeira de orla florida, e fomos dar ali onde acabava a terra fértil e começa a terra morta. Onde acabavam os jardins floridos e começava a areia seca. Subimos até ao deserto para, lá em cima, visitar, na superfície infinita, as escavações das pirâmides dos antigos faraós, resgatadas da areia.

Regressámos ao fim de algumas horas. Parámos na primeira e única cabana das redondezas e saímos do carro. A cabana estava à sombra de três palmeiras particularmente bonitas, de forma que Magdy quis fotografá-las. Focou a máquina e fez clic. Tudo o resto era silêncio.

Nesse silêncio que pairava no ar, entrou, de repente, uma menina pequena. Com cabelos desgrenhados e movimentos ágeis, descalça, escura e magra, aproximou-se de Magdy silenciosamente.

—Queres fotografar as palmeiras, mas para isso tens de pagar — disse, quando se pôs à frente dele.

Olhava-o com um olhar desafiador e estendia a mão na sua direcção.

—Vai-te embora! — disse Magdy, que mediu a distância com passadas, carregou no botão e depois passou para o outro lado da estrada.

A menina esfarrapada e frágil atravessou-se-lhe no caminho.

Ele afastou-a para o lado como a um cão incómodo.

Ela seguiu-o e falava-lhe:

— As palmeiras são nossas — dizia ela, cada vez mais insistente e com a voz subindo de tom. — Se queres tirar-lhes uma fotografia, tens de pagar.

—Vai à fava! — repetiu ele.

A pequena olhou-o, furiosa, e repetiu com uma voz estridente:

—Tens de pagar. As palmeiras são nossas! São as nossas palmeiras.

Magdy, até aí excessivamente paciente, não suportou aquele tom.

— É atrevida e desavergonhada — disse para mim.

Com poucas palavras enxotou a criança, o que a exaltou ainda mais.

Eu não compreendia o que diziam, porque ambos usavam palavras pouco usuais e limitavam-se a lançá-las simplesmente à cara um do outro. Contudo, percebi uma frase que a menina disse, porque, essa frase, disse-a devagar, palavra a palavra, cheia de desprezo e de raiva.

—Vocês são avarentos, como todos os ricos. Avarentos e maus!

Magdy tirou mais uma fotografia e nessa ficou até a menina, pois tinha recuado para junto das palmeiras. Mal se ouviu o disparo da máquina, ela recomeçou de novo, com a voz a tremer de raiva:

—São as nossas palmeiras! E eu, eu… Oh, vocês, os ricos!...

Pareceu-me que, no gaguejar selvático, também transparecia medo. Acreditaria ainda aquela criança na antiga crença pagã de que, com a imagem, também se obtinha o domínio do objecto? Perguntei-lhe:

—Tens medo por teres ficado na fotografia?

A menina olhou-me admirada e respondeu-me calmamente:

—Não, não tenho medo nenhum.
E, sem mais uma palavra, regressou à cabana.

Segui-a, preocupada, e quis entrar, mas a menina tinha trancado a porta por dentro. Não abriu quando bati.

Magdy também se aproximou. Franziu o sobrolho quando se ouviu, saído da cabana, um fraco gemido de recém-nascido.

—Uma criança doente! — disse ele, e pediu à menina que abrisse.

Mas a porta permaneceu fechada. E mesmo a um segundo pedido nosso.

— E a mãe que não está junto do filho doente… — disse eu.

—Ela está no campo. Tem de trabalhar.

Em seguida, através da porta, Magdy disse à menina que era médico e que podia ajudar.

Ela não respondeu.

Ficámos parados, indecisos. Após alguns momentos, ouvimos a menina dizer para a criança:

—Vais morrer e a mãe vai bater-me porque não sei pedir esmola. Os estrangeiros têm muito dinheiro mas não nos dão nada. E as palmeiras até são nossas!

Ilse van Heyst -Lene MayerSkumanz (org.) Hoffentlich bald ,Wien, Herder Verlag, 1986

Deves tratar as pessoas com delicadeza, de contrário elas afastar-se-ão de ti.

Um pequeno gesto afetuoso pode ter um grande significado.

Sem comentários: